quinta-feira, outubro 16, 2008

As Memórias de uma Remington

As Memórias de uma Remington



A noite fresca avança sem pressa.

A luz fraca ilumina a sala de leitura. Sombras estáticas compõem o cenário marcado pelos móveis escuros, de madeira maciça e estofado de couro lustroso. Não venta e apenas algumas folhas da árvore perto da grande janela se movem quando a brisa passa.

O som da velha Remington ecoa pelo ambiente, lutando contra o silêncio e a calma tão comuns àquele lugar. Toc. Toc. Toc. Toc. Uma palavra. Toc. Toc. Toc. Mais uma. E as folhas de sulfite ganham nova forma, tatuadas ao bel- prazer dos caracteres de chumbo. A batida é forte, a fita de duas cores com a camada preta já gasta sobe, o papel cumpre sua função. Toc. Toc. To...

O pensamento é interrompido. Você dorme no divã ao lado. Penso em seus sonhos, como foi seu dia, se gostou do jantar que preparei. A boca entreaberta permite que palavras não ditas ganhem o ar. Seus lábios se movem, mas sem som. Algo importante acontece em seus devaneios.

Toc. Toc. Toc. Tic. Toc. Toc. A datilografia continua. A caneca de chocolate quente com licor irlandês e biscoitos espalham seu aroma adocicado e reconfortante no canto onde está a escrivaninha. Cada uma de suas gavetinhas contém uma história, uma função, um momento em que elas deixaram de ser peças inanimadas para inspirar algumas daquelas letras. Toc. Toc. Uma interrupção. Como descrever a maçaneta daquela porta tão importante na trama? Os dedos tamborilam e os olhos deslizam pelo cenário e fixam-se no pequeno puxador da gaveta no topo direito superior. O puxador parece aumentar, ganha proporções de gente grande, ali não existe mais uma gaveta. Agora é uma porta e ela leva à solução da história. Seus detalhes deixam a simples realidade de um pedaço de mobília para ganhar a eternidade. Toc. Toc.

O papel cumpre sua função. As últimas batidas de algo que começou há anos. Milhares de páginas tatuadas pela eternidade. Borrões em algumas delas, outro grande número de folhas amassadas no cesto de lixo. Não há espaço para erro ou desleixo. Toc. Tic. Toc. Toc. Toc. Os dedos estão cansados. Você continua dormindo.

Uma das bonequinhas se move na grande poltrona almofadada. Ninguém percebe. Ela se move novamente e, em instantes, um cachorro de pelúcia se junta a ela. Ambos olham para você. Seus olhos de acrílico eternamente fixos contemplam seu sonho, pensativos, profundos, imutáveis. Eles devem ter trocado confidências sobre o que viam, coisa de bichos de pelúcia, os melhores companheiros. Sempre dispostos, sempre presentes. Para rir e se molhar, voar pelo ar ou perder um braço – ou uma asa, no caso das fadas – sempre que necessário. Mas sem nunca reclamar. O som da máquina de escrever fica mais leve. Tec. Tec. Tic. Tec...

Um gole de chocolate quente anima o espírito. Uma recompensa merecida. Falta um parágrafo. O gosto do licor provoca lembranças boêmias, das noites sem dormir – sempre escrevendo – e dos poemas imaginados durante as perambulações na vila. Lembranças. Muito tempo atrás. Antes de você. Antes do peixe-palhaço que, agora, compartilhava a poltrona com o pug maltrapilho, a bonequinha e uma caixa misteriosa. Perplexidade. Por alguma razão, o relógio entra no campo de visão. É madrugada. O olhar se volta para você.

Você ainda dorme.

Os dedos deslizam pelas teclas da Remington com leveza e deleite. A pilha de páginas ao lado ganha a importância de um troféu. Um grande prêmio, como se todas aquelas folhas fossem uma preparação para aquelas últimas linhas. Tec. Tec. Tic. Tec... enfim, a conclusão. “Ele tomou a decisão que mudaria o mundo”. Toc. Ponto Final.
Girar o controle de pressão da folha para retirá-la da máquina foi instintivo. Era a última. A página suspensa em frente aos olhos, como a um filho recém-nascido. Um respiro profundo valoriza o momento. A cadeira de couro marrom rodopia na sua direção para apresentar o rebento, mesmo que de forma silenciosa. O movimento chamou a atenção para a poltrona com seus ocupantes misteriosos. vazia. Como se nada tivesse acontecido. Um sonho acordado talvez? O giro se completou.

Você ainda dorme, mas não está mais sozinha. O cachorro, o peixe, a fada, um par de sapatos, uma boneca gigante e a tal caixa misteriosa ficam ao seu redor. Um cenário improvável. Licor demais? Sono atrasado? Devâneio provocado pela felicidade do momento? E foi quando ela apareceu.

A pequenina surge em meio aos brinquedos passeadores. Ela a idolatra, contempla e falava baixo com seus amigos inanimados sem ligar para o horário ou para a escuridão. Olha para mim. Seu sorriso angelical cruza a sala. Eu sei o que vai acontecer. Você não.

“MAMÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAEEEEEEEEEEEE!”

A noite é uma criança.

terça-feira, junho 10, 2008

Buscas

Onde encontrar paz quando você está distante?
Quando sorrir, se você não estará aqui para ver?
Se acordo feliz, logo me lembro da real felicidade.

Logo estaremos juntos, nesta vida ou na próxima.
Nestes dias tempestuosos, busco apenas minhas memórias.
Busco a lembrança de seu sorriso, mesmo bravios.

Mesmo te amando, sinto que te perco.
Sinto tanto que machuca, por incontáveis vezes basta apenas olhar para o lado e não te encontrar.
Por não poder te ver, nem te sentir.

Nem mesmo a distância pode apagar meu carinho.
Pode ser bobeira, pura tristeza passageira.
Puro amor machucado, mas sincero.

Mas nada é mais forte que minhas certezas.
Que vencerão, não importa onde, quando, como...

08/06/2008
Universal Studios

quarta-feira, novembro 07, 2007

A Celebração na Chuva

As sombras podem insistir em tentar cair sobre o mundo, mas momentos de luz mantém nossa esperança.
E momentos assim só podem ser criados por pessoas especiais e boas.
É isso que vivemos aqui hoje.
Há muito tempo, o mundo era um só, mas se separou e criou seus diversos povos.
Nossos antepassados. Todos aqueles que trilharam o caminho que hoje seguimos. Honramos todos eles com nossa vida e, mais que tudo, com nossa felicidade e fé.
Fé num mundo melhor. Num mundo que não precise de cura.
Muitos podem nos chamar de tolos por celebrar as velhas tradições, mas essa tolice traz bondade e muita felicidade até mesmo para a própria terra em que pisamos nesse instante. Assim como ela, nós fazemos parte desse mundo. Porém, diferente dela, nós podemos fazer a diferença.
Podemos fazer escolhas que importam.
Hoje, Yuri e Claudio mostram o motivo de serem especiais. Esse círculo sagrado, do qual participo com muita honra e emoção, é mais um pequeno passo em direção a um futuro promissor. E, sem medo de ser piegas, um futuro de amor e compaixão. Idéias podem mover nações, mas só o amor e a paixão pelas pessoas e por essas tais idéias é capaz de promover a mudança no mundo. A cura sempre buscada pelos druidas.
Muitos de nós aqui nos conhecemos por causa de paixões em comum e hoje, presenciamos e honramos, o resultado da paixão e do amor entre a Yuri e o Claudio. O caminho de vocês já começou faz tempo, mas, agora os deuses olham por vocês. Eles não pedem dinheiro, não pedem orações, não pedem fanatismo. Pedem... na verdade clamam, para que suas vidas sejam honrosas, que sua sabedoria seja transmitida a seus filhos e que nunca deixem de respeitar um ao outro e a todos que estejam à sua volta.
Lembrem-se, cada passo muda a vida de tudo e todos em nosso mundo. Vivam com companheirismo e honestidade, pois isso fará com que todos os seus passos gerem o bem para todos nós.
Os deuses olham por nós, se fazem presentes com a brisa, um facho de luz num dia de chuva, na inspiração, mas é nossa a obrigação de viver com dignidade. Acima de tudo, vivam e façam de suas vidas e de sua união, exemplos para quem quiser ver. Amar e respeitar não é uma obrigação, é uma escolha, que agora vocês tomam definitivamente e lhe somos muito gratos por estarmos presentes num momento tão único, especial e sagrado.
Que os olhos de todos os pássaros guiem sua visão, que a força de todos os ursos garantam a sinceridade de seus abraços, que a sabedoria de todos os seus ancestrais acompanhem suas decisões e que a serenidade de todos os druidas do passado e do presente mantenham sempre a vida de vocês no rumo que escolherem.
Na paz eu os conheci. E na paz quero sempre encontra-los, meus amigos. Sinto-me honrado ao dizer essas palavras e espero que vocês se sintam felizes por, uma vez mais, trazer esperança e luz a um mundo cada vez mais carente de pessoas boas e especiais como vocês.
Que os deuses sempre iluminem suas vidas. O futuro é de vocês.


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Yuri e Claudio, parabéns e boa sorte!

sexta-feira, junho 29, 2007

A Primeira Decisão

A Primeira Decisão

Por mais que os anos tenham mostrado a Beregond que ser bardo era sua missão, nem sempre foi assim tão fácil levar suas palavras aos ouvidos desconfiados de outras pessoas. Na verdade, era difícil até mesmo falar com sua própria voz e transmitir tudo aquilo que sua inspiração lhe trazia. Depois de um dia difícil, no qual vários aprendizes haviam se mostrado contrários ao modo antigo e aos conceitos das velhas histórias, ele decidiu contar uma nova passagem de sua vida. O dia em que encontrou a inspiração.

Foi bem fácil lembrar, novamente, da casa de seu pai. Desta vez, porém, não havia nenhuma lição que seus pais pudessem lhe transmitir. Aquela era sua hora, única e exclusiva dele. Mas, como tudo na vida, Beregond só perceberia a singularidade daquele momento mais tarde.

Seu pai havia acabado de voltar de uma caçada, que terminou com uma breve reunião dos chefes de família de Tara. Havia um rebuliço envolvendo rumores de guerra ao Norte e ao Leste, mas aquela terra era afortunada e poucos de seus filhos perdiam a vida em batalhas, já que poucas aconteciam naquelas paragens. Trouxera consigo boa carne e algumas frutas que colheu, como de costume, no caminho de volta.

O fogo já estava aceso e, quando o jovem Beregond desceu da árvore que explorava no bosque, faltava pouco para que o cervo lhes fornecesse alimento para aquela noite. Beregond limitou-se a olhar para o grande espeto que girava sobre as labaredas. Ouviu um pio e, pela primeira vez, encontrou seu amigo Pardal. Ele repousava sobre a janela e apenas observava. Mas, como muita coisa naquela noite, o Pardal ainda era um pequeno detalhe.

Seus pais discutiam alegremente sobre os planos para a próxima estação, porém, um desacordo acabou com a alegria e o clima tenso incomodou Beregond. Sem saber o real motivo, ele sabia como resolver aquele impasse, que, a seu ver, era algo bem simples. Porém, sempre havia ficado de fora de discussões dos adultos – não importava se envolvessem seus pais ou os líderes de Tara nas reuniões na cidade.

Uma tristeza muito grande tomou conta do bardo. Ele continuou sentado e pensativo enquanto acompanhava o cervo sobre o fogo. Já havia pedido permissão ao espírito do animal para que sua família se alimentasse uma vez, mas, sentiu que uma nova benção era necessária, já que suas preces sempre levavam como justificativa o clima de harmonia com o qual sua família faria a refeição.

A discussão aconteceu por conta do último inverno, que castigou a casa de Beregond e tornou a vida muito difícil por causa do frio e da neve que entrava por algumas frestas na madeira. O pai de Beregond queria construir uma nova casa, menor, mas num local menos castigado pela nevasca para passarem os invernos. Sua mãe, porém, relutava por precisar ficar longe de seus próprios pais e irmãos, que ali moravam.

Beregond lembrava-se muito bem daquele inverno. A comida não faltava, mas era difícil dormir, os dedos doíam e não havia pele que os protegesse do rigor do frio. O jovem sabia que algo precisaria ser feito. Seu pai adorava construir coisas, melhorar o que havia feito e sempre se adaptava aos novos desafios. Sua mãe, por outro lado, tinha conceitos muito arraigados, tinha medo de viver longe da família e tinha medo do novo, do que não pudesse controlar. De certa forma, ambos se completavam, mas essa completude começava a causar problemas.

No dia seguinte, no mesmo horário, o jantar estava posto. Embora o cheiro do ensopado estivesse delicioso, não havia aquele lampejo de alegria nas conversas. Apenas um silêncio incômodo envolvia a todos. Beregond havia passado o dia no Bosque onde, pela primeira vez, o Pardal se apresentou. Eles conversaram sobre as criaturas do lugar e o jovem perguntou a seu novo amigo sobre o que fazer. O pássaro alçou vôo, girou ao redor da copa das árvores e, minutos depois, pousou novamente ao lado de Beregond.

Sua resposta veio em seguida.

– Os pássaros migram para o Sul, com o frio. É nossa natureza pura e simples. Foi assim com nossos ancestrais e será assim com nossos filhos.

Beregond ouviu com cuidado, fez mais algumas perguntas e ambos começaram a rir com os alegres relatos do passarinho contador de histórias.

O silêncio persistia à mesa. Embaixo de sua cadeira, Beregond carregava um pacote. Propositalmente, encostou no embrulho como pé para chamar a atenção. Sua mãe mordeu a isca. Ele, receoso e preocupado com o que estava para fazer, engoliu seco, olhou para baixo e começou.

– Ouvi vocês brigarem ontem. E meu coração encheu-se de tristeza. Passei o dia pensando para ter mais clareza. E dizer o que digo agora com toda certeza – rimas eram difíceis, mas o Druida sempre dizia que funcionavam para chamar a atenção. E funcionou, seu pai começou a prestar atenção logo depois da primeira frase e agora ambos olhavam fixos para o rapaz. – Não devemos agir com tanta frieza e, tampouco, temos o direito de tirar de nossa vida toda a beleza. O inverno é obra da mãe natureza e é devemos admirar sua pureza, e não amaldiçoá-lo por nossa avareza.

Foi a vez do pai falar. – O que quer dizer com isso, meu filho? E o que tem embaixo da cadeira?

– O Druida sempre ensinou que precisamos viver em harmonia e que ela começa aqui. Dentro de casa. Como vou conseguir continuar o treinamento se não existe paz em meu próprio lar?

Pai e mãe permaneciam em silêncio.

– O que tenho aqui é a solução. Ela é simples e pode não funcionar tão bem, mas é um começo. Acho que precisamos de um novo começo, mais unido.

E, dizendo isso, retirou o pacote e colocou-o sobre a mesa.

– O inverno é frio e todos sofremos com ele nessa casa, que sempre será nosso lar. Mas, assim como tudo na natureza, precisamos nos adaptar. Assim como os pássaros que vão para o Sul quando o inverno chega, nós também podemos ir para onde papai sugeriu. Tenho certeza que ele construirá uma casa boa e gostosa apenas para o inverno. Aí teremos duas casas! Não é bom?

Os adultos limitavam-se a trocar olhares.

– Mas mamãe tem medo de ficar longe do vovô e da vovó durante todo o inverno, por isso fiz isso – e abriu o pacote.

Os olhos de sua mãe ficaram esbugalhados. Dois retratos e um par de botas de neve.

– Para que isso, meu filho? – perguntou a matriarca.

– Com as fotos do vovô e da vovó na parede da casa nova você não vai sentir tanta saudade deles. E com as botas eu posso levar cartas suas para a vovó uma vez por semana ou ir pedir ajuda, se precisarmos. Além disso – olhou para o batente da janela – o Pardal também pode nos ajudar.

Todos olharam e lá estava o pequeno pássaro. Ele deu um pio e voou para longe. Embora fizesse sentido na história do garoto, os adultos não acreditaram na parte do Pardal ajudar.

– Filho, é perigoso sair sozinho durante o inverno. Mas a idéia das fotos é muito boa – respondeu o pai. Sua mãe tinha lágrimas nos olhos, pois segurava as imagens e admirava a dedicação do filho.

– Você fez tudo isso por nós? – e olhou para o marido enquanto perguntava.

– Fiz isso por todos nós, e pelo mundo. Não pode haver paz lá fora se, primeiro, não existir paz aqui dentro. E, pai, o Pardal pode ajudar sim, ele...

Toc, Toc, Toc.

Não era comum receber visitas àquela hora, por isso, todos olharam.

O pai de Beregond foi até a porta e, quando abriu, foi surpreendido pela presença de Samildarach, o Druida de Tara.

– Boa noite, meus amigos. Boa noite, Aprendiz – dirigiu os olhos a Beregond – Os deuses me dizem que preciso falar com alguém desta casa. Existe algum problema em que possa ajudá-los? – disse o Druida.

Sorrindo, e segurando a mão de sua mulher, o pai de Beregond respondeu. – O problema existia, Samildarach, mas foi nosso filho que solucionou.

Ele estava prestes a começar a contar a história quando o Druida o interrompeu.

– Não precisa contar, meu caro, já fui informado de tudo que o Aprendiz fez.

– Mas como? – indagou indignado.

– Meu amiguinho aqui levou a notícia e me chamou – e apontou para o Pardal que, agora, repousava em seu ombro.

Uma vez mais, os pais de Beregond ficaram boquiabertos.

O garoto, porém, limitava-se a olhar tudo o que acontecia.

– Beregond, venha até aqui – ordenou o Druida, que o treinava há cinco anos.

– Sim, senhor.

– As notícias do Bosque alcançaram meus ouvidos e seus atos falam por si só. Os deuses lhe favorecem e sua inspiração se torna cada vez mais impressionante. A partir de amanhã, ninguém mais poderá chamá-lo de Aprendiz, jovem Bardo.

Os olhos de Beregond encheram-se de lágrimas ao ser chamado de Bardo pela primeira vez. Ele deveria conseguir o título em mais alguns anos, mas algo extraordinário aconteceu ao encontrar o Pardal e tudo aconteceu mais rápido.

– O... oo... brigado, senhor.

– Que essa seja a última gaguejada, garoto. Bardos não podem gaguejar – brincou o Druida.

Um leve sorrido tomou o rosto de todos.

Uma vez mais, o Pardal piou e partiu. Seus pais, Samildarach e ele mesmo sentaram-se para jantar e o ensopado, realmente, estava incrivelmente delicioso.

E foi assim que a voz de Beregond foi ouvida pela primeira vez, seu julgamento trouxe a paz e orgulho para seus pais.

Naquele dia, ele aprendeu a superar seus medos, enfrentou um problema que seria muito maior no futuro e conquistou sua liberdade. Com simplicidade, força de vontade e amor por sua família.

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/|\

quinta-feira, junho 21, 2007

O Bardo

O Bardo*

O coração do Bardo respondia a um chamado.
Nas distantes terras do Ulster sua habilidade era requisitada.
Sua razão era desconhecida, mas ao Bardo só restava iniciar sua jornada.
Caminhou então, em direção ao norte, seguindo o desejo de seu coração desesperado.

Guerra e tristeza foi o que encontrou,
Pois o coração dos homens clamava por luta e vingança.
E o sangue continuava a jorrar frente a tamanha matança.
Ao chegar, depois de muito pesar, o Bardo não acreditou.

Seu coração o alertou sobre o fim de seu caminho.
Nem jovem, nem velho. Nem homem, nem mulher escapava da guerra.
Para ele era claro que era chegado o fim de uma era,
Mas só o que fez foi pensar em todos com carinho.

Sentou-se numa pedra e começou a tocar e cantar,
Ao fundo ouvia-se apenas as espadas e lanças a ecoar.
Sua música aumentou e com ela as batidas de seu coração.
Atingidos por tão sincera melodia, espada e lança baixaram perante a canção.

Depois de muito tempo, o ardor das armas perdeu seu poder,
E as palavras do Bardo superavam o mais hábil dos guerreiros.
Todos caíram como que por um feitiço que parecia nunca esmorecer.
Sua canção aumentava cada vez mais,
Mas apenas para encontrar mais e mais lugares em que ela tivesse significado.

E, bravamente, o Bardo entoava suas histórias e instaurava a paz.
Do interior do que seria a última chacina veio a Luz.
Dentro de um belo vestido azul estava a imagem capaz de esmorecer o ímpeto do rapaz,
Mas nem mesmo essa visão o fez desistir de sua missão.
De ao outros mostrar a compaixão mesmo que para isso perdesse seu coração.

E assim foi até que a última das batalhas tivesse acabado.
E seu valente coração o abandonado.
Lá deitou o Bardo, nos braços daquela que o convocara,
Para que de suas palavras surgisse um novo começo.

==
* Foi esse poema que começou com tudo, que mostrou meu caminho bárdico e foi o responsável pela criação desse blog. Como uma nova fase se inicia, nada melhor que invocar a pedra fundamental de meu trabalho. Abraços a todos!

terça-feira, junho 19, 2007

A Balada de Cathain

A Balada de Cathain*

Das brumas da memória a deusa é convocada.
Assim ergue-se Cathain, a justa.
Lutando igualmente por todos os homens.
E também por amantes abandonados.
Numa alta torre, que ninguém era capaz de abrir,
Seu coração foi trancafiado.
Até surgir um príncipe do Leste do Ulster.
Seu nome era Conchobar.

Nos dias treinava a arte das armas
Com a deusa, espada, maça e arco.
E, à noite, ascendia o ardente fogo da paixão,
Que apenas os amantes conhecem.
Então, o guerreiro tornou-se rei,
Depois de muitas batalhas sangrentas e apaixonadas.
O trono pertencia a Conchobar
E Cathain, para a memória retornou.

Inimigos sombrios levantaram-se contra o rei,
Desafiando-o por seu trono.
O destino do Ulster ficaria na balança,
Sem seu campeão.
Um druida partiu para fazer um sacrifício.
Uma oferenda a Cathain.
Uma bela donzela com cabelo dourado
Morreria não uma, mas duas vezes.
Duas vezes.

Mas Cathain não mais retornaria,
Para lutar a guerra do rei.
Enquanto o druida não fizesse a honraria,
Na distante Conamara.
A virgem Iona, pura e doce,
Deitou-se na mesa livremente,
E na sedenta pedra de Corclach
A inocente foi sacrificada.

A deusa guerreira surgiu em fúria
Do berço do Mar do Oeste.
Milhares ela matou com seus punhos de aço,
Naquele dia sangrento.
Salvou o reino e cumpriu sua tarefa,
E desapareceu sob ondas espumantes.
Até que o sacrifício dos filhos de Ulster
Clamassem, novamente, por seu retorno.

==
*Tradução da canção The Ballad of Cathain, de Grant Lee Phillips. Recebi essa música há anos e sempre tenho escutado, mas só hoje resolvi arriscar uma tradução/adaptação para o português. Quem conhece minha história vai entender o porque isso, especialmente por se passar no Ulster.

Original abaixo.

The Ballad of Cathain

Bid goddess rise from mists of memory
Rise the fair Cathain
In battle the equal of every man
And every lover disdained
Her heart was locked in a roundtower's keep
And none that gate could unbar
Till rose a prince in Ulster's east
His name was Conchobar

By day she taught him feats of arms
With sword and mace and bow
By night they kindled passion's fire
That only lovers know
So king and warrior thus were joined
In battles blood and love
The throne belonged to Conchobar
To Cathain the Witch's Glove

Dark rivals rose against the king
To challenge for his throne
All Ulster in the balance hung
Without its champion
A druid he sent to sacrifice
An offering to Cathain
A maiden fair with flaxen hair
Not once but two times slain
Two times slain

Ooh ooh ooh

But Cathain she would ne'r return
To fight the kings own war
Till druid did a virgin bring
To Conamara far
The fair Iona pure and sweet
On the self-same table lain
And by the Corclach's hungry stone
The innocent was slain

Hey hey hey
Hey hey hey

In rage the warrior goddess from
The Western Sea arose
Her bloody gauntlet dealt that day
A thousand fierce deathblows
The kingdom saved her quest complete
She sank beneath the waves
Till Ulster's sons with sacrifice
Bid her return once more.

domingo, junho 17, 2007

Novos Comentários

Amigos e Amigas,

O Bardo retornou e agora tem novo serviço de comentários. Recomeço do zero, mas agora é um sistema constante e que vai sempre registrar os comentários.

Abraços a todos!
Bençãos do Awen! \!/

segunda-feira, junho 11, 2007

A Chegada de Samildanach

*Algunas pessoas vão entender, outras não, mas tudo bem. Achei, sem querer, e comecei a ler, só lembrei que era meu depois que terminei. Data de 2002. Boa jornada!*

Mais um ciclo estava por terminar. O ânimo era imenso entre os habitantes de Tara, já que os preparativos para o Samhain haviam começado e a grande noite estava prestes a chegar. Muitos deles aguardavam ansiosos, já que essa seria sua primeira celebração efetiva - ah, crianças, tão meigas e cheias de vida, e já felizes em celebrar os rituais da nossa Terra . Algo deveras agradável.

Com isso, o buburinho era ininterrupto. Pessoas agitadas, crianças em algazarra, sacerdotes tomando suas precauções e, enfim, todos fazendo o que precisava ser feito. Num dos intervalos dos turnos de trabalho na grande tenda, três amigos sentavam-se à beira de uma grande mesa - fartamente abastecida com um leitão e canecas de cerveja - enquanto conversavam em sua hora de descanso.

Manannan, como de costume, contava suas antigas histórias sobre os deuses, batalhas contra invasores e até mesmo contra enormes animais que o atacaram, certa vez, numa grande floresta ao sul de Tara. A seu lado, Caer, sua grande amiga e Guleesh, um rapaz quem ele havia conhecido há pouco tempo em suas andanças pela Ilha Esmeralda. Todos riam, como faziam todos os dias, enquanto permaneciam dentro dos muros da abençoada colina.

E a amizade entre eles prosperava. Manannam e Caer eram grandes sábios sempre dispostos a dividir seu conhecimento e a guiar pessoas como Guleesh, que, em pouco tempo, tornou-se muito caro a eles. Suas façanhas eram conhecidas em vários lugares, mas a verdadeira profundidade de sua amizade, ainda era segredo mesmo para os grandes intelectos da ilha.

Um deles, porém, conhecia a força desse simples e alegre trio, já que a chegada de Guleesh foi um claro sinal da formação de uma intensa irmandade. E, enquanto eles se divertiam, uma figura encapuzada aproximava-se do portão principal da fortificação. Com um leve aceno, ele foi admitido na cidade e dirigiu-se em direção à grande tenda.

Ainda na mesa, Manannan e Caer ouviam atentos à voz insegura de Guleesh ao pronunciar uma poesia redigida poucos dias antes. Eles eram um bom público, aliás, qualquer dupla que fosse formada ficava muito atenta ao que o terceiro elemento dissesse. Era o momento mágico que só eles tinham consciência. E eram felizes por isso.

Quando Guleesh terminou sua leitura, porém, não foram os brados de Manannan que ele ouviu, mas sim uma risada baixa, mas penetrante que chegou a seus ouvidos acompanhada pelo som de duas palavras saídas de uma voz rouca: “Sem palavras”.

Ao ouvir isso, Manannan e Caer saltaram - quase derrubando a mesa, diga-se de passagem - e olharam para o estranho encapuzado. Guleesh ficou meio perdido e, quando pode virar-se, viu os dois amigos a seu lado - todos encarando o recém-chegado.

Assim que analisou o homem mais cuidadosamente, um leve sorriso surgiu na face de Manannan. Caer nutria suas suspeitas, mas não quis se precipitar. Então, foi o mais velho quem disse: “Quem és e porque disfarça tua voz, assim como tua face?”. Dizendo isso, Manannan cruzou os braços e lançou um bonachão sorriso. Ele sabia de quem se tratava.

Caer repetiu as mesmas palavras e entendeu a feição do amigo. Como se esperando a manifestação do mais moço, o estranho olhou para Guleesh, que pode ver seus olhos mesmo por baixo dos farrapos. “Tuas palavras representam aprovação ou desgosto, estranho? ”, indagou o jovem.

Caer não resistiu e caiu na gargalhada ao notar a expressão preocupada de Guleesh. Manannan deu um forte tapa na cabeça do garoto e foi acompanhado por Caer e também pelo estranho em outra grande gargalhada. Guleesh não entendia nada, mas isso duraria pouco.

“E você ainda precisou me indagar, seu velho cabeça-dura?”, perguntou o estranho a Manannan.
Todos riram novamente. Menos Guleesh, que estava perdido.

“Guleesh, meu amigo, este é Samildanach. Se há algum mistério que essa terra guarde e do qual eu não fiz parte, se há alguma lembrança que essa terra possui e que não te contamos, e se há alguma boa cervejaria que eu não conheça pergunte a ele. Você encontrará a resposta, mesmo que não diretamente, mas encontrará. Principalmente se falamos de cerveja!”, explicou Manannan. Samildanach meneou a cabeça na direção ao jovem. Sua face era menos grave e o esboço de um leve sorriso já surgia em seus lábios.

Em instantes, todos gargalhavam sobre o ocorrido. Sentaram-se à mesa e começaram a conversar, afinal de contas, havia muito a ser dito. Dois grandes amigos estavam sedentos por novidades do velho mentor, e um jovem inspirado palpitava só de imaginar tudo que aprenderia com o recém-chegado, que, sem dúvida, em breve, seria mais um grande amigo.

Mais um amigo da Colina de Tara, o lugar onde a inspiração toma forma, a alegria ganha rima, a tristeza se aprofunda e ganha beleza, e a beleza é enaltecida e sendo transformada em uma bela homenagem à Terra.

domingo, junho 10, 2007

Você e seus 50 anos

Sempre quis ser pai. Nunca soube muito bem o motivo.
Só sei que sempre tive essa idéia. Esse desejo.
Descobri a resposta para isso há alguns meses. Antes mesmo da Ariel nascer.
Parei para pensar no porquê de ser pai. Qual a razão disso tudo?
E uma imagem surgiu na minha mente.
Eu estava sentado em seus ombros, pai. No chuveiro, todo esticado tentando encostar na ducha. Não me lembro de palavras. Apenas dos sorrisos.
Sorri com a lembrança.
Depois, outro momento apareceu em meus pensamentos. Era uma hora de decisão. Quando tive que pedir demissão para apostar na minha vida. Mesmo sabendo que meu futuro não estava ao seu lado na gráfica, você, meu pai, disse que eu podia arriscar. “Eu te ajudo como puder”, foi o que você disse. Foi um ano duro aquele, mas nós dois batalhamos para dar tudo certo.
Pois é, foi difícil, mas decidimos juntos e funcionou direitinho.
E, então, lembrei de algo mais recente quando, num momento de dificuldade, foi você quem veio a mim perguntar sobre o que me angustiava. Chegou com aquele jeitão “meio sem-jeito”, mas perguntou e, mais uma vez, se ofereceu para me ajudar como só você sabe fazer.
Não vou mentir, algumas lágrimas já corriam em meu rosto.
Na verdade, eu nunca precisei pensar nessa vontade de ser pai por uma simples razão: eu já sabia a resposta. Você, meu pai, foi fantástico por mim e me guiou até o momento em que escrevo essa carta. Minha vida é pontuada pela lembrança de momentos contigo. Sejam eles tristes ou felizes.
Você e a mãe, meus pais, sempre estiveram lá por mim e por meus irmãos, assim como sei que sempre estarão pela minha filha.
Chega a ser poético pensar e escrever isso no aniversário de 50 anos, pai, meses depois de eu mesmo me tornar pai, justamente por causa das ótimas lembranças que você sempre me deu.
E sinto um orgulho danado por isso. Por você. Pelo que você fez. Pelo que você e a mãe lutaram.
Conheço pessoas que não se orgulham de seus pais. Que sequer gostam de falar sobre eles ou que vivem com medo e em guerra. Eu não. Eu falo para quem quiser ouvir que te amo e que tenho orgulho do homem honesto e bondoso que você é. Então, baiano, aí vão algumas palavras para você.

Papai

Lá do interior da Bahia veio esse maroto.
Que, tirando o gosto pela farinha, pouco tem de baiano.
Enfrentou a barra da cidade grande ainda garoto.
E logo começou a “vida de paulistano”.

Casou como se fosse Caetanear,
E trocou a boca de sino pelas fraldas lá em 78.
Passou aperto e encarou até greve.
Mas, nada impedia o homem de trabalhar.

Pai forte esse, sempre presente.
Pendurado na porta do ônibus todo dia.
Sonhando com um futuro melhor.
Trabalhando sem parar construindo a melhoria.
Foi homem de fibra, ensinando a pescar.
Nunca vacilou com a família, sempre em primeiro lugar.
Mostrou como ser homem certo e a perseverar.
E nunca deixa de viver com seu jeito simples e exemplar.

Se olho para trás, vejo seu sorriso.
Se encaro seu rosto, brinco com os cabelos brancos.
Se vislumbro seu futuro, estarei sempre lá.
Pois, sem ele, vida não há.

Meu pai, a mais sólida de todas as rochas.
Exemplo de honestidade.
Modelo de luta e perseverança.
O melhor pai que alguém pode ter.
Sem pompa ou circunstância.
Sem terno ou gravata.
Sempre simples e fala curta.
Apenas um homem.
Um homem bom, alegre e dedicado.
Meu pai. Meu herói. Minha vida.

Te amo com todas as forças.
Parabéns e até o aniversário de 100 anos!

terça-feira, fevereiro 27, 2007

A Verdadeira Luta

O dia mal terminou e já perdi a conta de quantas vidas tirei.
O negrume da noite começa a ocupar todos os espaços ao meu redor e a adrenalina dá os primeiros sinais de enfraquecimento em meu corpo. Nunca imaginei que esse dia chegaria, especialmente depois de tanta matança, mas aqui estou. E, finalmente, algo de estranho bate á minha porta. Não é medo.
Antes fosse.
Mesmo que pudesse fugir, lugar nenhum afastaria meus pensamentos. E o cansaço é muito grande. Sento e olho para o horizonte. Aos poucos, os resquícios de luz desaparecem, algumas estrelas ganham força e a lua reina soberana. Uma noite sem nuvens. Sem vento.
Estranho.
Descansar é a única opção. A dica para que mente assumir o controle com suas ligações sinápticas velozes, impossíveis de serem traduzidas ou transmitidas, tão rápidas que fica difícil diferenciar pergunta de resposta, referência de imaginação, passado do futuro, real do sonho.
Quem lê Lovecraft sabe do que estou falando. Aliás, é a referência mais próxima que pode explicar toda essa loucura. Informação demais. Demais.
Quando percebo, estou olhando fixamente para algum povo distante e os pensamentos aumentam o volume. Meu corpo só fica quieto, relaxando, recuperando as forças. Os olhos ardem um pouco. A única parte em movimento é o do braço que leva o copo d’água aos lábios. Ele também enche o copo vazio. Os dez livros do galão devem ser suficientes. Foi o único pensamento material no meio de tudo aquilo.
Morte. Onde tudo começou.
Foi inevitável não pensar em Cervantes e seu Dom Quixote vagando pela vastidão da Espanha. Sol na cabeça. Armadura pesada. Algum dinheiro e um escudeiro gordo. Dava para sentir o calor e o cansaço no lombo do cavalo. O que ele pensava quando não praguejava algo para Sancho Pança ou quando o tédio tomava conta dos viajantes?
Duvido que tenha sido a idade que o tenha feito enfrentar os moinhos gigantescos. O Sol talvez. Mas os caminhos da mente o levaram àquele embate histórico antes mesmo dele acontecer. Ele deve ter imaginado dezenas de perigos que ele enfrentaria, incontáveis donzelas que precisariam de resgate e tantas situações que requisitassem seus dons cavalheirescos. E a reação para cada um desses cenários era previamente ensaiada, revisada, imaginada, vislumbrada à exaustão. Até mesmo sonhos, quem sabe.
Na primeira chance. Boom! Gigantes! Carga, Sancho! Infelizmente, nunca saberemos que outros desafios poderiam ter surgido à frente do intrépido e galante guerreiro espanhol. Eternamente guardados em seus sonhos.
Mente inquieta.
Sonhos. Devaneios. Mensagens dos deuses. Provações. Ulisses e sua jornada.
Muito além do homem contra os deuses, existia o homem contra ele mesmo. O medo da morte em meio à tempestade. Desconhecido. Surpreendente. Algo assustador como um gigantesco Caliban pronto para abocanhar os temerários.
Em meio a isso, havia o homem que deveria guiar e encontrar soluções. Ele as buscava na solidão dos pensamentos. Confusos. Impróprios. Incertos. Algo precisava fazer sentido. Uma nuvem com formato familiar, o som das ondas, o ruído do vento.
Um verdadeiro campo de batalha interior. Mental. Era preciso encontrar armas. E lutar.
Eles lutaram.
Eu lutei. E luto. Agora sem nenhum inimigo à espreita.
Assim espero.
Alguns minutos se passam e relembro de pessoas. Lugares. Reações. Feições.
E dos julgamentos. Hipocrisia. Ostentação. Falsidade.
Espelhos? Medos? Um pouco de tudo?
A mente usa sua principal arma e sou inundado por mentiras. De todos os tipos.
Contei algumas. Ouvi outras. Ainda ouço o eco das piores. Imagino o que vem por ai. Algumas se tornam realidade. Tem acontecido ao longo dos anos. Deixam de ser mentiras possíveis, se transformam em realidades terríveis. Muita dor.
Um rosto conhecido. Deveria trazer afeto. Conforto.
Abre a porta para o Mal. Ódio. Ressentimento. Decepção.
Os sonhos voltam como uma montagem de flashback de um filme dos anos 80. Com direito a trilha sonora brega e atuações canastronas. Nem meu sonho teve orçamento suficiente para contratar o Harrison Ford para interpretar o papel principal. Esse sempre sou eu.
Continuo a contemplar a noite. Agora um pouco fria.
O foco agora está no que eu fiz. Nem lembrar dos heróis antigos ajuda. Surgem apenas nomes. Batalhas grandiosas. Tudo parece não ter ligação. Conexão. Desconexão. Internet. Maravilhas modernas. Horrores de hoje e de amanhã.
Volto ao campo de batalha de pouco tempo atrás. Os sons retornam com força total. Surround imaginário. Home Theater mental com dublagem em inglês, português e élfico. Busco o conselho do velho cinzento, mas o imagino sentado num canto, balbuciando sozinho. Meio ranzinza. Preocupado.
Sinto os lábios secos. A boca fica um pouco tensa. Mais um belo gole. Água. Nada de cerveja ou hidromel. Nada de hobbits dançantes. Nada de magia ou solução sobrenatural para o problema. Aquelas mortes foram culpa minha, não adianta pedir ajuda. Não desse tipo.
Penso em sangue. O olhar desvia para minhas mãos.
Limpas. Bem cuidadas. Ágeis.
As roupas também estão intactas.
O sangue mancha a sensibilidade. Sensibilidade insensível.
Matei sem pensar duas vezes. Parei para pensar em como fazer. Analisei cada passo. Tudo uma questão de escolha.
Algumas vezes apenas reagi instintivamente. Ação. Reação. Morte no final.
Quem está certo é o médico palhaço. Melhorar a vida é a meta. Salvar a Humanidade. Mas é preciso salvar a si mesmo antes. Tarefa difícil com tantas mentiras. Bem-vindo à caça às bruxas. Preconceitos. Nem laços de família conseguem te salvar do círculo de maldades e egoísmo.
A mente procura razões para a guerra. Motivos surgem. Nenhum é aceito. Nada parece plausível. Começo a lembrar das mortes. Silenciosas. Barulhentas. De todos os tipos. Meu arco descansa ao meu lado. Um lembrete. Foco pode ser a solução.
Procuro pela solução. Não pelo problema. Mas ele continua a surgir, cada vez mais incômodo. E a sensação estranha aumenta.
O relógio apita. Uma hora passou.
A noite continua sem vento. A escuridão reina suprema.
Pela janela vejo a uma luz. Não quero olhar. Preciso encontrar a saída antes da nova batalha. Ou melhor, não quero mais lutar aquela guerra. Exército de um homem só. Engenheiros. Beatles. Nada mais faz sentido.
Começo a imaginar que a resposta está em outro lugar. Talvez encontrar algum aliado? Aquele personagem fundamental de uma partida de RPG que você ainda não encontrou, então não pode avançar?
Pode ser. Continuo a enfrentar tudo de peito aberto. Coragem não falta. Assim como o sangue frio não me impede de matar sem remorso.
A luz da janela pisca e chama minha atenção.
O galão de água está praticamente seco.
A sensação ruim volta com força absurda. A decepção se torna completa.
Ficar sem ação é o que me resta. Todo o esforço se esvai. Só uma razão resta para não desistir. E ter esperança.
Enquanto isso, não resisto. O corpo se levanta e vai em direção da luz.
A tela do computador brilha irresistível.
Os soldados estão prontos. Os adversários o aguardam. Continuar?
Yes.
Pelo menos, por enquanto.

sábado, julho 15, 2006

Essas Histórias Nobres e seus Heróis Adormecidos

“É um reino de consciência, ou nada.”
- versão cinematográfica de Balian, Defensor de Jerusalém.

A chegada do novo Super-Homem aos cinemas foi capaz de relembrar muitas pessoas de seu herói predileto, do alienígena mais humano que a ficção científica já viu e, inevitavelmente, serviu para recuperar um ideal há muito deixado de lado: a verdadeira nobreza humana. É claro que, especialmente para Clark Kent, seja mais fácil lutar por um ideal quando não precisa se preocupar com balas, explosões e fazer isso com uma identidade secreta (nunca duvidem do poder de um par de óculos!), mas o formato de um herói tão representativo quanto o último sobrevivente de Krypton tinha uma razão de ser em sua criação e, agora, mais do que nunca, volta a ter relevância. Pelo menos, para aqueles que enxergam além dos efeitos especiais.

Muitos de nós crescemos ouvindo histórias sobre príncipes de reinos distantes que resgatavam princesas há muito perdidas de feras e desafios mitológicos. As primeiras brincadeiras invariavelmente eram os primeiros passos do “capa-espada”. Um dos primeiros modos de impressionar “pretendentes” era mostrar bravura e inteligência perante algum desafio, assim como os bravos do imaginário da antiguidade. Até que, um dia, alguém decidiu que era hora de parar de sonhar e “começar a viver” – a vida atual, imposta, privada de sonhos e sem escapatória. A partir deste momento, tudo aquilo que havia sido ensinado passou a ser negado e veementemente tachado como “brincadeira de criança”. Por mais que alguns ainda façam de tudo, mesmo que inconscientemente, para proteger a família, a namorada, a esposa, os filhos, para a maioria dos homens, acaba aí a fantasia.

Mergulhar nas HQs é um modo de retornar a esses modelos, mas, como seres “intelectualizados” e até um pouco exibidos, encaramos tudo aquilo como forma de arte, analisamos em convenções, escrevemos sobre o assunto e, vez por outra, surge alguém disposto a produzir. Tudo em nome da arte, é claro. De qualquer forma, o herói da infância volta e lá encontramos sujeitos como o imbatível Super-Homem, o genial Batman, o incansável Demolidor, o divertido Asterix, e, sem demérito, o “limitado” Tin Tin. Eles continuam a salvar a princesa e derrotar o dragão e, de certa forma, mantém a lembrança do espírito de nobreza viva.

Mesmo assim, o termo nobre acabou ficando muito marcado pelos cavaleiros medievais e filmes de fantasia, que, na maioria das vezes, eram tratados como bobagens juvenis. Só que algumas destas “bobagens” conseguiam, vez por outra, atravessar a barreira e entregar a mensagem ao grande público. Coração de Dragão foi um dos mais interessantes ao retratar a honra tanto no homem quanto no lagarto voador, porém, ambos são traídos pela ganância do “novo homem”. Outro que seguiu o caminho foi Coração de Cavaleiro que, em tom de comédia, defendia a verdadeira nobreza independente de classe social ou dinheiro. “Seus homens te amam, e isso é o suficiente para mim”, disse o príncipe Eduardo ao jovem William, em seu momento de elevação.

Embora tenha origens mais antigas, As Crônicas de Narnia – O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa e os demais livros de C.S. Lewis são grandes estandartes dos ensinamentos cavalheirescos, mas, assim como o desempenho nas bilheterias e a recepção de parte da crítica deixaram claro que era “coisa de criança”, o que não impede de levarmos em conta toda a construção do personagem Pedro Pevinsie, com sua incessante vontade de proteger seus irmãos e fazer sempre o que é certo. Ingênuo, mas puro.

Pode ser que justamente esta fácil relação entre bondade e ingenuidade tenha afastado os modelos atuais destes conceitos, afinal, todo bom moço tende a, no princípio, ser facilmente ludibriado pelo vilão e só consegue virar o jogo, normalmente, com alguma ajuda especial. Ultimamente, podemos sentir que a maioria das pessoas busca a esperteza e o famoso jeitinho de levar vantagem, seja para benefício pessoal ou financeiro. O sucesso de jogos como GTA San Andreas e do poderio financeiro e social do movimento rap norte-americano só comprova o culto ao valentão, ao rufião, termo que era muito utilizado nas traduções dos antigos contos de fadas. Muito diferente da preferência de muitos fãs a vilões como Darth Vader, Hannibal ou Khan, a devoção a anti-heróis reais acaba por afastar mais ainda a sociedade de um caminho mais produtivo. Por quê cantar sobre a paz se a violência é tão mais sedutora e lucrativa?

A esperança, porém, não acabou, já que alguns diretores e produtores ainda tentam mostrar caminhos e mundos melhores para o povo. Por mais romanceado que tenha sido o resultado de Cruzada, de Ridley Scott, a tônica do filme acaba sendo a idéia de que ações valem mais que conceitos ou palavras. Acima de religião ou interesse financeiro, de acordo com o filme, Balian – o herói de Orlando Bloom – defende o ideal do “nobre perfeito”, um homem disposto a tudo para não trair suas convicções e proteger aqueles à sua volta.

Ele vai contra a Igreja, contra o pensamento bélico e violento e arrisca tudo que foi conquistado pelos cruzados em prol de uma mentalidade pura, longe de ingênua, e produtiva – pelo menos na versão do filme, já que na história real, houve um grande pagamento a Saladino pela liberdade dos moradores de Jerusalém. Como a frase de início diz, Balian luta por um mundo consciente, pois somente assim, ele acredita, haverá paz e bondade entre as pessoas. É clareza de espírito ou a morte. Nobreza ou mesquinharia. Por mais que o personagem seja o paladino ideal, sutilmente escrito para parecer impecável – mesmo quando mata um sacerdote, o público entende sua razão e não o recrimina –, ele tem uma função claramente definida no filme: redimir a si mesmo e tentar estender sua redenção aos demais nobres de Jerusalém, tarefa na qual falha justamente pelo abismo de conceitos entre seu pensamento e o ideal de boa parte dos demais cruzados. Era o ideal contra a espada.

Embora muito focado na realidade norte-americana, o Super-Homem foi o personagem que mais simbolizou o bom-moço, o esforço incondicional e, acima de tudo, a doação extrema pelo povo que o acolheu. Sinceramente, é mais válido manter a visão original do herói em vez de incorporar as novidades de Smallville, que traz simplesmente um adolescente com alguns poderes especiais. E ponto. O kriptoniano é muito mais que isso e sua versão madura apresentada nos quadrinhos e no cinema mostra, efetivamente, o que ele é e sua verdadeira função em nossa cultura.

Praticamente um nobre cavaleiro, mas sem montaria ou armadura, o Homem-de-Aço é o mais próximo que podemos ter do antigo modelo do nobre protetor e, com uma vantagem, sem a possibilidade de corrupção. Por ser um sujeito ideal, moldado ao longo dos anos e com uma função bem definida, ele não pensa em dinheiro, fama e seu único desejo é o de ser correspondido em seu amor. Aliás, esse é um dos pontos mais marcantes do novo filme, já que Kent precisa reconquistar Lois, a mãe de seu filho.

Agora, mais do que nunca, ele tem uma razão para defender a Terra, como tantos outros fizeram antes dele. E é justamente aí que toda a sua importância faz sentido, pois, milhares de pessoas espalhadas pelo mundo podem voltar a ver as pequenas razões que tem para olhar para a vida de um modo diferente e melhor. Ser super-homem ou mulher maravilha, como recorrentemente mostrado por propagandas de TV, pode ser função de cada pai e mãe. Salvar o mundo, não necessariamente, precisa ser uma aventura a lá Jack Bauer, mas sim lembrar de como aprendemos na infância, das histórias, de como era ser valente, da doce sensação de conseguir salvar a princesa do terrível dragão de mentirinha. E de como era bom aquele tempo sem preocupações, problemas morais e que tudo se resolvia com um belo sorriso.

A consciência é uma ferramenta poderosa para o ser humano. E a nobreza é um dom que todos temos. Só precisamos saber unir as duas coisas para que o mundo real ganha um pouco de fantasia. E beleza.

- Fábio M. Barreto / Publicado na Sci-Fi News 101, Julho de 2006.

segunda-feira, junho 12, 2006

Heróis: formas iguais, tempos diferentes.

“O objetivo moral do heroísmo é o de salvar um povo, uma pessoa, ou defender uma idéia. O herói se sacrifica por algo, aí está a moralidade da coisa”
- Joseph Campbell


Ao ver mais uma versão do herói norte-americano no cinema, é extremamente relevante pensar em como e por que estes super-homens são criados em momentos importantes da evolução de nossa sociedade. Eles representam nossos sonhos, aspirações e quase sempre salvam o mundo. Foi o estudioso Joseph Campbell que, com seu, Poder do Mito, vinculou de maneira marcante a chamada Jornada do Herói a nossos personagens prediletos e é sob a luz de seus conceitos, assim como outros estudiosos, que podemos falar da evolução dos heróis, e suas motivações, nos últimos 30 anos.

Quando Luke Skywalker foi surgiu em 1977, ele era um jovem idealista, sonhador, tímido e receoso em abandonar seus Tios Owen e Beru. A chegada de R2-D2 e C-3PO e mensagem de socorro da princesa Leia não foram o suficiente para afastá-lo de suas obrigações na fazenda e motivá-lo a seguir os passos de Biggs e se tornar um piloto. Tão pouco o convite de Obi-Wan para que seguisse os caminhos de seu pai é capaz de fazer com que ele mude de idéia. Isso era tudo que o norte-americano queria e precisava na década de 70, um sujeito que procurava um modelo com grande senso de devoção à família e muitos sonhos. Literalmente, um cara que pudesse acreditar novamente.

Essa figura era necessária especialmente por conta da disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética e o forte abalo na fé no governo graças a escândalos, como, por exemplo, o Caso Watergate. Os mocinhos precisavam de um novo modelo, um novo herói, que não fosse mais o soldado da Segunda Guerra Mundial ou um caubói destemido. Este novo sujeito deveria ser forte o suficiente para levar o povo norte-americano para a última fronteira da época: o espaço! George Lucas acreditava “que seria possível construir uma nova, e complexa, mitologia moderna baseada na vastidão do espaço”.

E era exatamente isso que Luke representava, um personagem que poderia suprir as necessidades e deixar a crescente sensação de egoísmo de lado. De certa forma, Lucas deu o primeiro grande passo para combater a crescente mentalidade corporativa baseada em especialistas e consultores focados em resultados. A carga cultural entregue por Guerra nas Estrelas dizia claramente a todos, pela voz de Obi-Wan Kenobi: confiem em seus instintos. Era disso que eles precisavam. E era justamente o oposto disso que Darth Vader representava.

Enquanto Luke era o representante de Bem, com suas roupas claras e ideais imaculados, do outro lado do espelho estava a figura opressiva de Darth Vader, com seus trajes negros e respiração mecânica. Vader e o Império incorporavam a postura tecnocrata, totalitária e destrutiva associada às grandes corporações e à nem tão distante memória do regime nazista de Adolph Hitler. Para Campbell, “Vader é um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto. Este é o perigo que hoje enfrentamos, como ameaça às nossas vidas. O sistema vai conseguir achatá-lo e negar sua própria humanidade?”.

No começo, Luke sonha em integrar esse sistema ao se tornar um piloto espacial, mas é contido pela responsabilidade familiar. Após a morte dos tios, ele decide deixar o planeta e atender ao chamado de Obi-Wan Kenobi para, então, cumprir uma importante etapa do herói mitológico, pois “o menino, primeiro, tem de se separar da própria mãe, encontrar energia em si mesmo, e depois seguir em frente. É disso que trata o mito do ‘Jovem, vá em busca de seu pai’. Às vezes é um pai místico, mas, às vezes, é um pai físico”, de acordo com Campbell.

A grande verdade é que Luke só aceita seu “destino” por ter um certo desejo de vingança pelos tios mortos. Estas características eram muito comuns nos filmes de faroeste das décadas anteriores ? um jovem fazendeiro da fronteira sobrevive à carnificina provocada por índios ou bandidos e parte em busca de amadurecimento para obter vingança e pela justiça contra o sistema que permitiu a tragédia ? e foram assimiladas pelo jovem Skywalker e por vários outros personagens da ficção científica, tais como o príncipe Colwyn (Krull, de 1983) e Alex Rogan (O Último Guerreiro das Estrelas, de 1984).

Por ter o dom do herói, o personagem logo recebe a espada de seu pai e dá os primeiros passos de sua jornada em prol da causa universal, representada pelo pedido de ajuda de Leia, e da justiça que ele busca para si mesmo, em nome de sua família. As motivações de Luke, portanto, se adequam às do herói clássico, que é fadado a abrir mão da própria existência como conhece para o bem do todo.

30 anos depois... no mundo da tecnologia

Desde o salto tecnológico e da estrutura mitológica apresentada pela trilogia de Guerra nas Estrelas, o cinema de ficção científica não havia produzido outro grande fenômeno que repercutisse tanto em resultado de bilheteria quanto em influência social até o ano de 1999, quando estreou Matrix, dos irmãos Andy e Larry Wachowski. Com ele surgiu a figura de Neo, que, como o próprio nome já significa, encarna o “novo” herói do gênero ou, ao menos, uma nova versão.

A criação de Neo foi muito influenciada pela tecnologia e também pelos arquétipos clássicos da mitologia, em particular, do panteão grego. Ele surge adormecido em seu apartamento quando é contatado por Morpheus, o deus dos sonhos. Alheio à verdadeira natureza da Humanidade, o então Thomas Anderson fica confuso e curioso, mas logo é interrompido e começa a notar os sinais do início de sua jornada ao ver a tatuagem de um coelho branco na acompanhante de seu cliente. Dando sentido à mensagem de Morpheus.

A forma direta com que conceitos religiosos, mitológicos e a forte presença de discussões sobre relações de dominação – especialmente em Matrix Reloaded – se refletem na atual situação cultural e tecnológica em que vivem jovens do mundo todo. Neo representa o topo desse submundo porque é um hacker extremamente habilidoso.
Ele é um reflexo de parte da sociedade atual: mora sozinho num apartamento desordenado onde cria seus programas, tem vida própria na Internet, recebe um fluxo gigantesco de informações diariamente, cria suas próprias regras sociais e ídolos, pirateia informação e busca respostas, ou seja, seu habitat virtual e noturno, que é muito diferente da vida diurna como Thomas Anderson, programador de uma empresa de software.

Neo não tem vínculos familiares, vive duas vidas (reprimido e parte da engrenagem durante o dia e idolatrado durante a noite), como dois lados de um espelho que é virado ao entardecer e que volta à posição original ao amanhecer, e possui a percepção de que algo não está certo para si mesmo ou para o mundo.
Morpheus o contata por crer que ele seja o escolhido ? one, anagrama para o nome Neo ? da antiga profecia que antecipa o retorno do homem capaz de comandar as máquinas, acabar com a guerra entre Humanidade e inteligência artificial e devolver a liberdade à raça humana. Neo, porém, não sabe do fardo que carregará e aceita os conselhos de Morpheus para encontrá-lo, especialmente para encontrar a resposta a uma pergunta: O que é a Matrix?

O início da jornada de Neo é motivado pelo desejo incontido do personagem por conhecimento - sobre o mundo a sua volta e si mesmo - e possibilitado por seu dom e percepção extraordinários, mesmo que não muito desenvolvidos para seu real uso. Finalmente, ele abraça a causa universal e aceita seu papel de herói. Neo já buscava o conhecimento por sua conta e o surgimento de Morpheus mostrou um caminho mais curto e promissor para a solução de suas dúvidas.

Thomas Anderson veste-se com terno e gravata e tem um chefe exigente na companhia, enquanto Neo é despojado e dita suas próprias regras (antes de despertar da Matrix) e, depois de seu renascimento, assume o negro das roupas de couro, sobretudo e dos óculos escuros, também usados por seus colegas renascidos. Assim, nota-se que o herói moderno não mais responde pelo arquétipo visual do branco e claro simbolizando o Bem, enquanto o Mal não mais se apresenta em negro e com visuais horripilantes. Na Matrix, o Mal ganha forma na figura dos Agentes, entidades capazes de tomar o lugar de qualquer representação humana que ainda esteja conectada ao sistema, ou seja, qualquer um é o Mal em potencial.

Senhores de seus mundos, os jovens tecnológicos definem moda própria, um dialeto independente e regras de conduta para demonstrar o descontentamento e se consideram membros de um grupo mais preparado para lidar com o novo século, tal qual explica Morpheus: “a Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é nosso inimigo. Se você não é um de nós [pessoas prontas para acordar e lutar contra o status quo], é um deles. Dentro da Matrix, eles são todos e não são ninguém”. Depois de finalizar sua jornada e descobrir sua “nova vida”, como o Oráculo havia previsto, Neo faz uma ligação direta ao espectador. Quem quiser que atenda ao telefone.

Novo Mundo, Novas Necessidades

Embora Luke Skywalker e Neo tenham percorrido, inegavelmente, a jornada clássica do herói, foram criados em momentos diferentes. Guerra nas Estrelas (anos 70) apóia-se diretamente nos mitos clássicos, na filosofia oriental, tem grande influência de outro gênero, o western ou faroeste, e surgiu num momento em que a Humanidade olhava para o espaço e para o futuro com sonhos e esperança. Matrix (transição entre os séculos XX e XXI) atingiu, em sua maior parte, uma sociedade pouco esperançosa, predominantemente influenciada pelos computadores e bombardeada diariamente por informação e previsões nada otimistas para o futuro, mesmo com a presença das mesmas filosofias que ajudaram a criar a obra de Lucas.

Portanto seus heróis assumem a função de porta-vozes do conteúdo de suas épocas. É com o herói que o público estabelece seu vínculo com a trama e aceita, ou não, o que ele tem a oferecer, ou seja, é ele que, em meio a sua jornada de nascimento, crescimento, morte e renascimento, faz sentido para o espectador.

Luke surge como uma espécie de príncipe destronado em meio aos camponeses bondosos e temerários por seu futuro incerto. Neo, por sua vez, é um mestre de seu mundo simulado, hábil e já numa busca particular pelo conhecimento e iluminação. Seu visual é sombrio, ele atua na penumbra do submundo e pode fazer as escolhas que deseja.

Obi-Wan Kenobi e Morpheus representam o arquétipo do sábio e guia. Obi-Wan convoca Luke a ajudar a princesa em perigo, o que o afastaria de sua família e responsabilidade. Morpheus oferece conhecimento e a verdade a Neo. Quando parte de Tatooine, Luke tem um objetivo heróico por natureza: auxiliar a rebelião contra o Império. Entretanto, ele não espera que tenha que ser engolido pelo monstro (a captura na Estrela da Morte), assistir à morte de seu mestre e resgatar a princesa do dragão. Mesmo parcialmente dissuadido a abandonar o desejo de vingança, é esse sentimento, aliado à novidade sobre a natureza nobre de seu pai, que o leva a partir definitivamente em auxílio ao grupo de rebeldes que luta contra o Império Galáctico.

Neo segue o coelho branco, atravessa o espelho e descobre que toda a existência humana está subordinada à Matrix, numa mentira induzida. Sua motivação é pessoal e até mesmo depois das revelações de Morpheus, ele reluta em aceitar sua condição de salvador, situação que só muda depois de seu segundo renascimento e, como disse a Oráculo, ele seria o Escolhido “talvez numa outra vida”.

A própria noção de Bem e Mal se mistura nos dois filmes. Em Guerra nas Estrelas, há a divisão clara entre o Lado Negro e o Lado da Luz, porém, é explícito que ambos coexistem no universo e nas pessoas. Em Matrix, o herói não veste branco e tem origem subversiva, enquanto o inimigo pode ser qualquer um: “se você não é um de nós, é um deles”.

Com o surgimento de Luke, o novo arquétipo do herói estava pronto – o homem capaz por sua percepção apurada, vínculo com a família e o comprometimento ideológico com a justiça em prol da sociedade –, ao passo que Neo, é um sujeito independente da família e capaz de direcionar sua evolução e realizações de acordo com sua capacidade para o bem próprio, num primeiro momento, e com conseqüências benéficas para a comunidade durante seu processo. Luke pode ser a pílula azul e Neo a vermelha. Qual das duas você vai tomar? Ou, pode, simplesmente atender à ligação e descobrir por si mesmo.

Publicado na Sci-Fi News 100, edição especial, junho 2006.
O material foi baseado na minha tese de especialização com o título de O Novo Herói da Ficção Científica Norte-Americana.
Han Solo Atira Primeiro!

Lá vem mais uma Trilogia de Guerra nas Estrelas, mas, pelo menos, George Lucas resolveu lançar a versão original dos filmes em DVD.

Quando se trata de novos produtos, a palavra de George Lucas não pode ser muito levada a sério. Ele foi categórico e direto em muitos momentos ao garantir que a Edição Especial da Trilogia Clássica era a versão definitiva dos primeiros três e pronto. E lá fomos nós comprar um novo box de VHS e, finalmente, a versão em DVD. Críticas à parte pela ausência de extras praticamente obrigatórios como a cena com Biggs em Tatooine, a caixa foi um sucesso de vendas e deu novo gás para a franquia que decolou com A Vingança dos Sith.

E, então, quando todo mundo só tem olhos para a tão falada série de Guerra nas Estrelas, a LucasFilm, por meio de sua distribuidora a Fox Home Entertainment, anuncia o lançamento da versão original em DVD para o mês de setembro. Agora, fãs de todas as gerações vão poder escolher quais filmes querem ver: a edição especial de 1997 ou a remasterizada lançada pouco antes do retorno da Saga aos cinemas. A partir de setembro, Han Solo atira primeiro em Greedo, Jabba não é um “d”efeito de CGI e o Sarlacc volta a ser um misterioso buraco no chão com tentáculos e dentes.

Para colecionadores a notícia representa mais gasto, mas precisamos deixar o Lado Negro de fora e pensar que teremos, finalmente, a opção de ver os filmes que nos conquistaram pela primeira vez. Mas, quem conhece a estratégia da LucasFilm, sabe que este está longe de ser o último re-re-re-relançamento da saga. Muito em breve devemos ter o primeiro box com a Nova Trilogia completa, depois outro pack com todos os seis filmes juntos – com a edição especial –, aí outro com os mesmos filmes, mas com a versão original, isso se não tivermos a edição especial dos novos filmes.

Enfim, só no Brasil, até agora, foram lançadas 5 versões diferentes dos mesmos filme e ainda tem muita estrada pela frente. Agora fica a expectativa para a presença de algum novo extra do material original para acrescentarmos às já extensas coleções de versões no País. Assim que recebermos informação sobre a lista de extras, voltaremos a falar sobre o assunto. Que a Força, e os créditos republicanos, estejam conosco!
A Batalha Política no Espaço

Distanciando-se de vez de sua versão original, Battlestar Galactica aposta na trama polícia pontuada por boas seqüências de ação para reforçar seu enredo.

Para quem tinha dúvida, ou críticas, sobre as novidades inseridas no roteiro da série Battlestar Galactica, exibida pela TNT, às terças-feiras, às 23h, a segunda temporada deixou tudo muito claro. Até demais. Ao aproximar os cilônios da forma humana e olhar para detalhes sociais ligados aos sobreviventes das 12 Colônias de Kobol, o seriado parte para a arena política e social, em vez de focar numa grande seqüência de combates espaciais, o que era esperado por muitos entusiastas.

A presença cada vez mais constante de Tom Zarek (Richard Hatch) no cenário político, as constantes ameaças feitas pela Número 6 ao vice-presidente Gaius Baltar e as crescentes situações de tensão entre a população civil e a tripulação da Galactica tem sido a tônica desta segunda temporada. Muito mais que fugir da perseguição dos cilônios, controlar as pessoas e manter a união e a esperança parece mais difícil, especialmente depois de várias notícias como, por exemplo, a tentativa de assassinato ao comandante Adama, acusações contra oficiais e a aceitação de Laura Roslin como uma figura messiânica que será capaz de levar os sobreviventes à 13ª Colônia: a Terra. Mas, ao contrário de outros líderes, ela coloca-se em risco e participa das missões mais arriscadas, como uma incursão em Kobol para descobrir o verdadeiro caminho para o nosso mundo.

Sem inovar, entretanto, a produção aproveita fórmulas de sucessos de outros seriados de longa duração e aplica alguns de seus elementos à trama. No episódio Final Cut, por exemplo, a atriz Lucy Lawless (Xena) é a personagem principal num típico roteiro de “invasão da imprensa”, para contar as verdades do braço militar da frota. Quem acompanhava Babylon 5 vai se lembrar de quando a estação foi mostrada como um lugar decadente e mortal por conta de interesses políticos. O resultado em Galactica não é o mesmo, mas a semelhança é inevitável. O que vale mesmo é a revelação da cena final, e a chegada de um novo cilônio infiltrado: a própria Lucy, que tem o apoio da presidente Laura Roslin. Aos poucos, todos os modelos cilônios vão sendo revelados.

Outro capítulo que vale menção é Scar. Quem acompanhou o breve, mas interessante, seriado Comando Espacial (Space Above and Beyond), que era exibido pela Record ao lado de Arquivo X pode se lembrar de um episódio na qual o principal inimigo era uma espécie de Barão Vermelho assassino. Aqui, Starbuck, que já teve um episódio dedicado à relação com um caça inimigo – refilmagem de um dos capítulos da série original – se vê diante de um inimigo que vem dizimando seu esquadrão. Um ponto bem positivo para os amantes da ação.

Aproveitando a onda de medo e preocupação na população norte-americana, menções ao terrorismo e a tendências racistas têm surgido aos montes. Até mesmo o Chefe Tyrol foi encarcerado sob suspeita de ser um cilônio, enquanto Starbuck descobre que as máquinas estão implantando bebês cilônios em mulheres humanas nos planetas ocupados. Aliás, a tenente Kara Starbuck tem sido o foco de boa parte dos episódios. Ela encontra um foco de resistência humana e, finalmente, coloca, literalmente, Lee Adama contra a parede.

Parece que os produtores encontraram a dose certa de drama e ação para esta nova série, que, cada vez mais, ganha sua própria mitologia e sustentabilidade, já que conta apenas com elementos, nomes e lugares da primeira série. O resultado é de primeira linha e, não fossem as legendas, poderia ser considerado praticamente perfeito para os dias de hoje.

Um Mundo Sério Demais

Um Mundo Sério Demais

Ao tentar transformar grandes lendas em filmes repletos de ação e batalhas, os estúdios de Hollywood deixam de lado antigos mitos para mostrar heróis independentes de magia e da espiritualidade antiga.

Em todo o mundo, crianças ouvem suas primeiras histórias sobre grandes heróis, façanhas inacreditáveis e lugares maravilhosos por meio da grande mitologia e espiritualidade existente nas culturas européias e asiáticas nos últimos milênios, porém, recentemente temos passado por um momento em que os grandes estúdios decidiram abandonar o lado mítico destas histórias para, por exemplo, transformar o mais poderoso dos semi-deuses em um simples guerreiro.

É o que vemos, por exemplo, em Tróia. Sob o comando de Wolfgang Petersen (Air Force One) e roteiro de David Benioff (A Última Noite), uma quantidade enorme de recursos, elenco estelar e um grande esforço de pesquisa foram colocados à disposição para recriar a, até hoje incerta, Guerra de Tróia. Exércitos grandiosos, uma história de amor como motivação, interesses políticos como agentes do conflito, um herói imbatível, etc, etc. Tudo muito bonito e certinho para o público, porém, o que a equipe de Petersen deliberadamente tirou do caminho foi toda a mitologia grega, que regia, por muitas vezes, as vontades de reis, motivava soldados e protegia heróis como Aquiles.

Numa breve passagem do filme, Aquiles fala com sua mãe, que profetiza sua morte caso ele vá à guerra. Entretanto, nada se fala sobre ela ser a ninfa marinha Tétis e sobre o fato de que ela, na tentativa de o tornar invencível, mergulhou-o no rio da Estige segurando-o pelo calcanhar. Como esta única parte não foi banhada pelas águas protetoras criou-se ali seu ponto fraco. O calcanhar de Aquiles. Outro guerreiro com um ponto fraco similar é o nórdico Ziegfrid, que tinha uma pequena falha em formato de folha em sua proteção mítica ao ser banhado pelos deuses.

Vários fatores míticos são atribuídos a Aquiles: sua armadura foi feita por Hefesto, o ferreiro dos deuses, filho de Zeus e Hera; seu destino havia sido decidido anos antes de seu nascimento pelo próprio Zeus e por Poseidon; e foi descrito como um deus por Homero, na Ilíada. Em várias versões da história, também vemos a intervenção direta de alguns deuses nos combates da Guerra de Tróia.

Se os deuses do Olímpo puderam ser ignorados em prol da ação e de batalhas grandiosas, o que dizer então da versão crua e puramente militar do lendário Arthur Pendragon. O filme Rei Arthur, dirigido por Antoine Fuqua (Dia de Treinamento), que muitos esperavam ser uma adaptação da trilogia Rei do Inverno, de Bernard Cornwell, acabou mostrando um Arthur romano, basicamente um líder militar atuando contra os “bárbaros” bretões e apoiado por leais e letais cavaleiros vindos de uma terra distante. Mesmo com a presença do competente autor e estudioso John Matthews como consultor histórico, o diretor preferiu inserir elementos mais “ligados” a sua concepção para o personagem do que se apoiar na história mítica.

Em uma conversa logo após o filme, Matthews disse que a ordem da produção era clara: “nada de magia, é um filme de ação”. Ou seja, logo de cara, o filme perdeu a chance de ser o mais próximo possível do até hoje pesquisado sobre o personagem justamente por ter alguém como Matthews envolvido, porém, relegado ao segundo plano. Com isso, Excalibur transformou-se na espada do pai de Arthur, Merlin tornou-se líder dos “bárbaros” woads (nome dado aos bretões), a existência de Avalon e da Dama do Lago sequer é cogitada, e Arthur apresenta-se apenas como um bom líder militar interpretado por Clive Owen. Um homem comum, muito longe do mito que o mantém na mente das pessoas e é referenciado até hoje. Pobres das crianças que assistem aos desenhos e ouvem à versão da história de um jovem destinado a ser rei retirando a espada mágica da pedra ou a recebendo do espírito da água.

Por mais que a premissa do filme seja “apresentar uma versão desmistificada sobre o personagem”, séculos de histórias e crenças envolvendo o Rei Arthur e seus cavaleiros não poderiam ser simplesmente ignorados assim. Não que alguma versão seja mais acurada que a outra, mas o ponto latente nesta discussão é o fato de Hollywood estar rotulando de forma pesada e clara a magia, a espiritualidade não-cristã, e as crenças antigas como elementos para filmes puramente ficcionais como O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia, Harry Potter, etc.

A sociedade moderna pode não ter mais espaço para a crença no antigo poder dos druidas, nos feitiços de grandes bruxos, na magia da natureza, porém, desvincular os grandes mitos e heróis da ligação com os deuses e a magia que muitas vezes os auxiliavam acaba por enfraquecer o poder do mito em si. E não vivemos uma era propícia ao surgimento de novos arquétipos sociais, culturais e militares. Cada vez mais, torna-se necessária a existência de modelos a serem seguidos e enfraquecer os elementos clássicos pode não ser o melhor caminho.

Engana-se, entretanto, quem entende este argumento como um estandarte a favor do antigo paganismo ou da existência da magia, uma vez que o próprio cristianismo sofre do mesmo mal. Em Cruzada, cujo título original é Kingdom of Heaven – o Reino dos Céus – a trama que aparentava ser focada no aspecto espiritual da jornada até Jerusalém não passou de um filme de ação, com batalhas eletrizantes, um herói cativante, porém, frustrado com a política envolvendo a crença em Cristo e a própria descrença dos religiosos envolvidos e da ausência real de ideais na manutenção da posse da cidade. Riddley Scott andou apostando em obras críticas como em Falcão Negro em Perigo (provavelmente a razão por ter perdido o Oscar por direção em Gladiador) e não poupou a Igreja Católica em Cruzada.

Especialmente no cerco de Saladino a Jerusalém, a fé dos religiosos é abalada pela iminente derrota e a perspectiva de massacre, sobrando para Balian (Orlando Bloom), que viajou à cidade em busca de redenção – a verdadeira razão de sua cruzada pessoal –, oferecer a esperança outrora ofertada ali mesmo por Jesus séculos atrás. O que deveria ser uma jornada baseada no sagrado e na fé acabou se transformando numa trama política e num jogo de poder.

É uma pena notar que esta tendência existe na indústria e que sob o argumento de mostrar “a visão real” sobre vários personagens fundamentais na construção do pensamento moderno e dos arquétipos que até hoje guiam os homens e seus sonhos, deixemos de lado a simples crença num mundo em que a fé, literalmente, pode mover montanhas e que uma simples espada antiga pode reunir os homens sob um objetivo comum. Ação pode render boas bilheterias, batalhas podem inspirar diretores a superarem Peter Jackson, mas é de ideais e modelos admiráveis que nossos sonhos são criados e é sobre eles que novas gerações serão ensinadas e baseadas.

Hollywood quer nos vender um mundo sério demais e deixar tudo que pode dar tempero a nossa vida com cara de faz de conta. Hoje, pode ser, mas há muito tempo atrás, em povos muito distantes, a coisa era bem diferente e, quer diretores e roteiristas queriam ou não, eles são nossos ancestrais e seus pensamentos de decisões, de certa forma, definiram o mundo em que vivemos hoje. Que a magia resista à tendência financeira e que a Fênix consiga se reerguer das cinzas dos grandes estúdios e suas fórmulas de sucesso.

Publicado na Sci-Fi News 97, março de 2006.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Anoitecer na Ravina

Anoitecer na Ravina

Certo dia, Beregond encontrou seu filho. Sentado numa ravina, apreciando o pôr do sol, o bardo viu um garoto se aproximar. Calmo, mas com um sorriso angelical no rosto, o menino de cabelos claros e olhos cativantes foi chegando cada vez mais perto. Às vezes, desviava seu olhar para uma borboleta que passava por ali, ou perseguia um grilo em disparada pela grana. E continuava chegando mais perto.

Beregond nunca havia visto o garoto, que poderia ser qualquer um, mas, de alguma forma, ele sabia que ali vinha seu filho. Uma sensação estanha tomou conta do bardo, que chegou a duvidar de seu sentimento, mas, quanto mais se questionava, mais a certeza crescia. Ele queria ir ao encontro do garoto, mas lhe agradava vê-lo brincando com a natureza.

Como se assistisse a um espetáculo, Beregond limitou-se a olhar. E por muito tempo olhou. Por vezes, o garoto olhava para ele, sorria e continuava a brincar.
Por fim, eles se encontraram. Beregond estava pensando numa nova poesia e nem percebeu que a seu lado estava sentado o garoto. O filho.

Como se chama?, perguntou o bardo, enquanto sentia cócegas por uma formiga que andava por sua mão. O garoto, nada respondeu, e imitou o gesto, procurando por uma formiga na grama.

De onde vens, pequenino?, tentou novamente. Desta vez, Beregond deitou-se e entrelaçou os braços atrás da cabeça. Com um sorriso, o menino, novamente, o imitou. E gargalhou. Deitados eles ficaram por uma eternidade. A presença do garoto era reconfortante, e bastante alegre, mesmo sem falar nada.

E juntos eles se assustaram com um bando de pássaros que saiu das árvores em polvorosa, suspiraram quando o Sol finalmente se pôs, e contaram as estrelas em volta da Lua procurando a estrada para a terra eterna. Beregond não perguntou mais. Algo lhe dizia que não era necessário. E simplesmente desistiu. Escolheu aproveitar o momento.

O garoto dava risadas. Rolava pela grama. Agora foi Beregond quem o imitou. Brincaram muito, trocaram muitos olhares. Uma coruja chegou, pousou num galho próximo e os observou por um longo tempo. Eles olharam de volta e seriam capazes de entrar e viajar pelo conhecimento do pássaro, mas preferiram ficar ali mesmo. E assim foi.

Beregond adormeceu e não viu o garoto partir. Ganhou um beijo, um carinho, e dormiu mais profundamente.

Na manhã seguinte, era seu amigo pardal quem estava a seu lado. Beregond perguntou sobre o filho e o companheiro lhe contou que era realmente seu filho, mas ele só viveu por um momento que se transformou na eternidade da mente do bardo. Sentou-se novamente no gramado e contemplou os primeiros raios do Sol que vinham das montanhas do Leste. Uma lágrima escorreu e, conta o pardal, milhares de navios poderiam navegar por suas conturbadas ondas de tristeza.

Então, Beregond repetiu a pergunta: Qual é o nome dele?

O pardal fez um piu, olhou para baixo e tocou com o bico no solo. Olhou para o amigo e partiu.

Beregond olhou para o mesmo lugar e lá encontrou uma palavra escrita por gravetos: Futuro.

E se lembrou de tudo que poderia ter sido, ou que do ainda estar por vir.

Lá no alto, o pardal só observava.

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Sail Away in the tears of time...

quarta-feira, setembro 21, 2005

Vazio

Desde pequeno, Beregond, assim como seus jovens amigos, foram ensinados a temer muitas coisas. Deviam temer o escuro, o fogo, o desconhecido e os desconhecidos. Deviam ter medo da morte. Eram tantos medos devidos que a própria vida não era vivida, mas temida, afinal de contas, somente vivendo era que todos poderiam exercer todo esse medo ancestral.

Certa vez, conversando com seu amigo pardal, Beregond ouviu uma antiga história sobre o escuro. Havia uma porta negra, dizia o pardal, que foi aberta pelo Homem. O que todos viram era apenas num contorno negro, sem cor, sem movimento. Um vazio incômodo de onde nada poderia vir. As pessoas olharam, questionaram, não entenderam, e tiveram medo. E assim foi para a maioria da Humanidade. Sempre olhando, sempre com medo, sempre distante.

Enquanto o pardal contava sua lenda, o bardo lembrou-se da infância. E de um velho baú que seu pai guardava num dos cantos da casa. Curioso, ele foi bisbilhotar no baú uma vez e, quando abriu, levou um susto, pois só o que conseguia ver um negrume opressivo. Toom. Fechou abruptamente.

Por anos, aquela ausência de matéria, aquele vazio incômodo o perseguiu. Em sonhos, em lembranças, na simples presença do baú. Sua presença, porém, foi diminuindo com o tempo até se transformar numa simples lembrança de infância.

Pouco antes de sua aventura pelas florestas do mundo, porém, Beregond retornou à casa de seu pai e lá estava o baú. A primeira reação foi de um medo ancestral, mas os tempos eram outros. Ele decidiu, mais uma vez, olhar para dentro da caixa, mas temia reavivar o medo do nada.

Respirou fundo antes de abrir. E lá estava ele. O Vazio. Desta vez, porém, o medo não o venceu e Beregond resolveu arrastar o baú para baixo da janela, onde a luz do Sol entrava cordialmente. Num momento mágico, e único, a luz invadiu as trevas. As cores dançavam, se entrelaçavam. E, logo, o preto deu lugar a um dourado deslumbrante.

Maravilhado, Beregond olhou para dentro da caixa e logo reconheceu marcas no fundo de madeira. Uma imagem. Um homem segurava um garotinho. Ambos sorriam muito. E o bardo logo sorriu também.

Abaixo da figura entalhada estavam o nome de seu pai, o dele próprio e a frase: Enfim estás pronto, meu filho. Vá e conquiste o mundo.
A história é tão chata que ri de ódio, amigo? Perguntou o pardal. Deixe-me contar o fim, agora que tenho sua atenção.

E continuou.

O que todas aquelas pessoas não imaginavam era que atrás daquela porta, por tanto tempo evitada e temida, havia a entrada para um dos mais belos vales de toda a existência. Muitos a chamavam de Éden, outros de Paraíso, mas os mais sábios e valentes, que enfrentaram o desconhecido, conheciam aquele lugar como seu lar.
Deu um pio. E voou de volta para a floresta.

Já era noite. O bardo olhou para o céu e, pela primeira vez, não viu um véu negro pontilhado por estrelas. Mas sim um mar de estrelas rodeadas por milhões de possibilidades.

...

Sail Away

terça-feira, setembro 20, 2005

Renascer

O Bardo acordou. Hoje à noite, o texto de retorno será publicado. A avalanche vai começar. Espero que gostem.

Sail Away,
Bardo

quarta-feira, agosto 24, 2005

Uma Razão

Fiquei meses sem te escrever.
Passei semanas sem te homenagear com minhas palavras.
Gastei horas pensando na razão de tudo isso.
Levei minutos para compreender.
Então, olhei para as estrelas de felicidade.
Imaginei teu rosto naquele mar de pontos brilhantes.

Amo minhas palavras e me delicio com cada uma delas.
E vou além, quando falo de você. Imagino-te lendo.
Sorrindo. Agradecendo.
De repente, quando eu tinha tudo para escrever mais e mais, parei.
Parei. E sozinho na noite. Chorei.
Do meu lado, você dormia tranqüila.

Parei de escrever para ti.
E foi por ti.
Minhas palavras bastam.
São ditas, não escritas.
Agora, você está aqui.
Ao meu lado.

Te ver me motiva.
Te sentir me sacia.
Te abraçar me completa.
Te olhar, me dá vida.

Quem sabe, em breve, eu não volte.
A escrever mais para você.
A dedicar mais poemas a você.
A mostrar a todos, o quanto te amo.

Por hora, apenas te admiro.
Olho nos teus olhos.
Seguro seus braços.
Beijo tua boca.

E acompanho tua vida.
Do teu lado.
Hoje.
E sempre.

Te amo.

domingo, abril 24, 2005

O Contar dos Anos

Vivemos à sombra do contar dos anos. Anos anuviados marcam o princípio. Crescemos embalados por meses acelerados. Seguidos por tempos de pensar, pesar. Ofício.

Cada ano, porém, é apenas um ano. Medido cartesianamente por segundos, horas, dias, meses. Enfim, um ano é um ano. Finito. Invenção abstrata e intransponível do homem para medir sua vida. E morte.

Desde cedo, aprendemos sobre o tempo e os anos. O início e o fim. E vamos vivendo. Ano após ano. Na contagem ininterrupta das horas. Do tempo. Em direção à morte. Ou a outra vida.

Pelo contar dos anos, estamos presos e condenados. É uma conta que nunca pára. Nunca muda. Nunca. Será?

Na medida oficial de nossa vida são os números absolutos que comandam a evolução. Experiência. Saber, ou não. Entretanto, medida tão inexorável quanto esta afeta desta maneira apenas àqueles que vêem a vida passar. E contam. Até a morte. Simples assim.

Deveria haver muito orgulho em dizer, contra todos os parâmetros, que se tem 300 anos e não 20. Sanatório? Quem sabe.

Se pensarmos todos no que se vive dentro de um reles ano. Que condensa todas as horas. E também compacta, guarda e espreme milhares de risadas, alegrias, tristezas, conquistas, derrotas e tantos outros momentos. Ah, momento. Tão breve, tão belo. Trivial. Para os tolos.

Poucos acreditariam, ou entenderiam, na beleza de se viver 100 vidas num único e reles ano. Milhares de existências num período, por definição finito, portanto, cerrado. Inexpugnável.

Em 5 anos, vivi infinitas existências. Nascimento, vida e morte. Ininterruptamente. Ao te olhar, um novo ser surgia, te idolatrava pelo tempo que tinha que ser. Atingia sua plenitude. Razão. Propósito.

E fenecia. Tornava-se conhecimento. História. Para um novo renascimento.
Um ciclo movido pelo amor inexplicável. Turbilhão de sentimentos nutridos por ti. Pelo teu simples sorriso. Simplicidade cativante.

Uma vez por ano. O contar dos anos nos confronta. Regras. Sempre regras. No fim das contas, adicionamos um singelo 1 à conta. Número tão básico da existência, que aliado a tantos outros de seus iguais forma o conjunto. O tempo passa.

Toda a alegria vivida. Todo o conhecimento adquirido. Tudo que se pensou, fez, ou deixou de fazer ganha forma numérica. E de 1 em 1 o contar dos anos nos amarra. Apaga. Esquece. Talvez.

Como um arquivo de computador. Baseado em 0 e 1. Lá está nossa vida. Esquecida para quem não liga. Bem guardada para quem enxerga. Escolha.

É dentro desta Caixa de Pandora que se encerra tua razão. Mito? Verdade. Explore-a. Viva milhares de vidas num segundo. Transforme centenas de anos numa vida. Dobre o tempo à sua vontade. Livre arbítrio.

Paixão. Amor. E a vontade de viver. Pura existência.

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Feliz Aniversário, Doce Gilwen!

terça-feira, novembro 23, 2004

O Pilar e a Gema

Imagine que existe um grande pilar que sustenta o firmamento de forma silenciosa e constante. Vislumbre todos os seus detalhes calmamente esculpidos por seus criadores e vigias durante gerações e gerações da existência. Todos lá, alheios às indas e vindas daqueles que abaixo deles viviam. Que cena deslumbrante é essa, ainda mais por ser “apenas” um pilar.

Toda essa grandiosidade foi dedicada e concedida ao pilar para que ele – na verdade, sua simples existência – pudesse realizar uma tarefa tão importante quanto manter o firmamento e a ordem por Eras e Eras da existência.

Por muito tempo, o pilar se manteve forte, inabalado e constante. Inconstante, porém, foi o surgimento de seu desejo por conhecimento, pelas razões de sua existência. Foi então que ele notou a presença de outras formas, outros seres, um só mundo. Também percebeu que algumas destas entidades tentavam chamar sua atenção e se aproximar de sua majestade.

Era um novo tempo e esses seres não mais queriam adorná-lo ou reforçá-lo, mas sim, buscar seu conselho, seu apoio, e, inadvertidamente, um pouco de sua força. O pilar, do alto de sua bondade e benevolência, abriu seus domínios a todos que quisessem compartilhar sua presença e seu conhecimento. Infelizmente, a abertura também permitiu que uma fina camada de água começasse a penetrar em sua base. Demorou até que a consciência do pilar compreendesse aquela estranha sensação. Quando o fez, achou bom, pois desconhecia tal elemento e lhe agradou o contato.

Com o passar do tempo, os seres e entidades ficavam cada vez mais próximos ao pilar, subiam em suas gravações, aproveitavam, aprendiam, retiravam e, apenas, alguns devolviam, retribuíam. O que o pilar também desconhecia era o efeito de todo esse contato. Sua bondade era extrema e tudo que ele fazia ou permitia que lhe fosse feito era imbuído de luz e carinho. O tempo passou, aqueles que lhe acompanhavam pegavam o que queriam e partiam para nunca mais voltar. E a água começou a subir.
Por muito tempo, o pilar aprendeu coisas com as tais criaturas e ampliou seu já vasto conhecimento.

Certo dia, ele sentiu – pela primeira vez – falta de alguma coisa. Em sua base havia uma gema de beleza única e idade ancestral. Embora o pilar não soubesse, ela havia sido posta lá por seu criador, seu pai. Todos que perto chegavam por ela eram cativados por seu brilho cintilante e sensação acalentadora. Quando o pilar teve esse estranho sentimento, buscou em suas bases a percepção daquela parte de sua existência, não mais a sentiu como parte de si. Havia desaparecido. Em seu lugar, apenas a água que há muito começara a corroer suas fundações.

Ele estendeu seus sentidos e percebeu que sua gema, uma parte da razão de sua existência, estava sendo levada, lentamente, para longe por alguns daqueles seres que, certa vez, ele havia admitido em seus domínios. O pilar nada podia fazer, a não ser lamentar e então ouvir o lamento daqueles que a ele permaneciam fiéis. Ele passou tanto tempo inebriado pela bondade que distribuía e por suas novas descobertas que não deu atenção à ruína que surgia em sua fundação, na retirada de uma parte de si, e na partida daqueles que o prejudicaram.

E o mais importante, ele não notou que, agora, aqueles que o idolatravam agora o seguravam, escoravam e lutavam contra as ondas que se chocavam violentamente com o pilar. Um desses seres, o maior de todos os fiéis, tomou para si a maior das tarefas e, sem pestanejar, envolveu seus grandes braços e direcionou toda a sua força para impedir que o pilar se movesse mais um milímetro sequer em direção ao chão.

E assim ele ficou, solitário, dedicando sua existência à preservação do pilar, do firmamento que ele sustentava, e todos que sob ele viviam. E o pilar não mais se moveu. Foi assim por um tempo, mas alguns dos seres ainda continuavam a lamentar a perda da gema e a ruína de seu principal apoio. Seu motivo de existir.

Foi então que um grupo dos mais queridos – especialmente os cansados de lastimas e de tristeza – deixaram a base do pilar do firmamento. Instintivamente, alguns moveram-se para o lado do grande fiel, que passaram a ajudá-lo em sua incansável tarefa. Outros, dotados de habilidade extrema e iluminados pela luz e sabedoria do pilar, deixaram seus domínios a fim de recuperar sua preciosa gema. Só ela, descobriram eles, seria capaz de restaurar a base do pilar, acabar com o pesar e realinhar a vida.

Que nos seja permitido encontrar esses pilares de nossas vidas e, ao contrário daqueles que partiram e deixaram o pesar, possamos manter nossas convicções e tenhamos a sabedoria para devolver o amor e a sabedoria que nos foram concedidas com tanta bondade e apreço. No fim das contas, como em toda história feliz, o pilar permanece e felizes são aqueles que o apoiaram em sua necessidade. Ah, a gema... bem, ela está em nossos corações, não importa o quanto tentem tirá-la de nós, ela sempre estará lá e teremos força para reencontrá-la e reforçá-la. Sempre.

quarta-feira, novembro 10, 2004

Lágrimas fora do tempo

Sou aquele cheio de lágrimas
De pesar
Por aqueles que ainda não partiram
Mas ainda assim vivo em lágrimas
Por tudo aquilo que vivi, vivo
E ainda viverei
Por todos aqueles que amei, amo,
E ainda amarei
Encontro nas lágrimas as razões para amar
E ter a certeza de que este é meu lugar.
Sonho e Realidade

Sonhos todos temos.
Sonhamos com o futuro.
Deliciamo-nos com idéias.
Mostramos um pouco quem realmente somos.

Sonhos tenho aos montes.
Destes montes existirá a realidade.
De um dia lembrar do passado.
E rever aquele garoto sonhador.

Um destes sonhos, porém,
Vivi e revivi em devaneios solitários.
Falta pouco para sua hora.
Em tempo chegará sem demora.

E, então, erguerei minha criança.
Com orgulho e amor.
E, finalmente, direi:
- Pai, este é seu neto. Prometo ser tão bom quanto foste comigo.
E ambos lembraremos deste dia até o crepúsculo.

sexta-feira, outubro 29, 2004

Rio Inóspito

Na solidão da noite, ficamos à mercê de nossos medos, de nossos segredos, de nossa verdade. Nossos rostos, finalmente, não precisam representar para aquela sempre atenta platéia de pessoas com quem convivemos durante o dia todo. Se te lembras de memórias felizes, esta felicidade será pura e do seu jeito. Se a lembrança é de tristeza, lamentarás com a maior emoção. Mesmo que nunca descubramos qual é nossa verdadeira face frente às mais distintas reações e emoções – afinal, basta haver um espelho para que, automaticamente, comecemos a atuar – sabemos que naquele momento único, e solitário, somos nós. Indivíduos. Pessoas. Sozinhos.

Em meio àquela miríade de idéias desconexas, imagens recentes, medos ancestrais, planos imediatos, idéias geniais e tantas outras coisas que pensamos e imaginamos quando nos entregamos ao relaxamento de nossas camas, somos capazes de pensarmos em nós mesmos e nos entregarmos a nossos verdadeiros anseios.

E, nessa hora mágica, os medos também surgem e reagimos – sem o menor controle – da maneira que queremos. Mais intimamente. Sem preconceitos. Sem preocupações. Pode ser uma gargalhada para espantar os temores, pode ser a retração corporal para se esconder das sombras da noite, podem ser as lágrimas. Lágrimas sinceras, lágrimas verdadeiras, lágrimas desesperadas e entristecidas.

Elas são capazes de formar um rio que, em meio a soluços e bravatas solitárias contra o vazio, leva parte da dor, alivia o medo e refresca a alma. Rio gelado de puro pesar. Que faz pensar. Ponderar. Sonhar. E continuar a chorar.

Navegar neste inóspito rio traz muitas lembranças, memórias e marcas pesadas de nossas vidas. Assim como um filme desfocado que se desenrola na escuridão, revivemos sentidos, emoções, cenas e conversas de tempos passados como crianças experimentando fortes emoções. E assim, permitimos a nós mesmos revisitar erros e medos. Fica a escolha de enfrentá-los ou simplesmente viver tudo novamente.

O importante é navegar. Morrer para renascer. Renascer para relembrar a beleza da vida. Viver para amar e continuar amando.

E o ciclo se repete.