terça-feira, dezembro 31, 2002

O Senhor dos Druidas

Em tempos em que muito se fala sobre renascimento de várias linhas pagãs de religiosidade e filosofia, uma das que mais ganha força é o druidismo. Descontando todo o mito popular que envolve esta prática – que para muitos fazia sacrifícios humanos e era coisa de gauleses –, pode-se dizer que vários acontecimentos de ordem global reforçam, sem a menor intenção, alguns dos pontos chaves para esta prática filosófica. São canções enfatizando a importância da manutenção e recuperação do planeta, são personalidades levando mensagens de entendimento de modo sério – nada mais de aventuras como a de Sting na Amazônia – e uma série de programas televisivos e filmes que, descompromissadamente, abrem um pouco mais a perspectiva de seus espectadores. Ou seja, é um movimento natural e mundial que caminha em direção a alguns dos princípios do druidismo. Em meio a tantos exemplos que poderia citar, porém, destaco um que tem sua origem no século passado – cerca de 50 anos atrás – e que se mostra como um dos mais atuais e impactantes. Para quem tem olhos para ver, é claro: O Senhor dos Anéis.
A obra de Tolkien já foi objeto de inúmeros estudos, artigos e teses sobre diversos assuntos. Seu conteúdo, porém, ganha mais força agora que as adaptações chegam ao cinema. Com a recente estréia de As Duas Torres – segundo livro da trilogia – o assunto natureza e as ações que cada um faz para preservá-la e utilizá-la da maneira correta dão o tom à boa parte da história. Deixando de lado todo o roteiro, batalhas e tudo mais, este texto foca a linha de acontecimentos que envolvem os Ents, os hobbits Merry e Pippin e o mago Saruman. Para saber mais sobre o resto, o filme ainda está em cartaz!
Mas não é óbvio que os Ents representam a natureza? Nem tanto. Seu grande representante é Barbárvore, o mais antigo dos pastores de árvores. No início lá está ele, fazendo sua parte na manutenção da floresta de Fangorn, que por sinal é um de seus nomes e é um fato muito importante. No filme, assim como no livro, o personagem deixa bem claro que o mais importante a ele são as árvores e continuidade da existência das florestas. Porém, surge o fator externo que balança as estruturas e provoca a mudança. Arrisco avaliar a chegada dos hobbits Merry e Pippin como a pílula vermelha que Barbárvore é meio que forçado a tomar. Um empurrãozinho, digamos.
Vejo que neste ponto é melhor focar apenas na idéia e não em como foi escrito no livro ou como foi visto no filme, já que a essência foi mantida na versão cinematográfica. Contextualizando: há uma guerra em andamentos e os homens estão seriamente ameaçados; o inimigo é Saruman, um antigo mago, que abandonou o caminho da luz e optou apenas pela sombra, perdendo assim o equilíbrio. A pedra que pode virar a balança nessa situação é representada pelos Ents, ou seja, a força da natureza.
A resposta, porém, vem com a frase: “os Ents não tem o poder para parar esta tempestade”, que Barbárvore diz para desespero dos hobbits, no filme. É aí que tudo vai começar a fazer sentido e dar forma ao pensamento que originou este escrito. Cabe a Merry, numa ótima interpretação do alemão Dominic Monaghan, dar uma lição à velha natureza e provocar uma mudança.
Merry lembra aos Ents que o que quer que aconteça fora dos limites da floresta, com o tempo, vai afetar o que acontece dentro da própria floresta. E dependendo do lado que vencer, a floresta deixará de existir num curto espaço de tempo. A frase: “Mas vocês são parte deste Mundo”. Explica muita coisa, de maneira bem direta. Esperar que ações de outrem garantam a continuidade de certos indivíduos, ou pequenos grupos de seres vivos, é um erro. Pecar pela omissão pode causar tanto, ou mais dano, quanto uma ação mal-colocada.
Embora Peter Jackson não deva nunca ter pensado nisso – e talvez tenha passado pela cabeça de Tolkien – toda esta situação evoca a tríade druídica:
- cure a si mesmo;
- cure a comunidade;
- cure a terra.
A consciência de que se eles não fizerem nada naquele momento pode colocar tudo e todos em risco não poderia ser melhor colocada. A princípio Merry preocupa-se com a segurança de seus amigos, mas ele mesmo nota que a questão é mais séria do que a vida de algumas pessoas. Ele está falando de todo o seu povo, de todos os povos – animais ou vegetais.
A maneira como o filme coloca a indignação do personagem ao saber que os Ents nada farão, a não ser esperar que o golpe chegue a seus domínios, dá dicas da maneira que deveríamos nos portar. Mais que falar ou ficar posando, ele agiu e lutou para que sua ação gerasse ações em outros seres. No filme isso foi em vão, já no livro os Ents entendem o recado e prontamente – dando a devida proporção à velocidade entesca – ao chamado. Merry notou a necessidade do momento, portanto curou a si mesmo – para hobbits isso deveria ser muito mais fácil, já que eles viviam em grande harmonia com a natureza, aliás, dentro da natureza, já que seus lares eram tocas no chão. Ao tentar dobrar os Ents, ele buscou curar a comunidade e, a partir daí, gerar uma ação que começaria a curar a terra, passando assim por todos os “requisitos” da tríade.
A resposta apática dos Ents reflete, de maneira triste, a postura que muitas sociedades têm hoje em dia em nosso mundo. É muito mais fácil criticar ambientalistas, ou “apoiar” a ideologia, e continuar desperdiçando água, jogando lixo nas ruas ou incentivando práticas que só ferem o mundo. E a nós mesmos. Devo deixar bem claro que cada um escolhe seu caminho e como pode, se optar, ajudar a melhorar as coisas.
Os Ents optaram pela comodidade. Decidiram não lutar e assim prolongar um pouco mais sua existência, até que a tempestade chegasse à copa de suas árvores. Então, como não haveria retorno, eles lutariam, desesperadamente, e cairiam um a um. É triste ver a analogia com nosso mundo, mas é bom saber que muita gente vem percebendo isso de uns tempos para cá. Foi justamente desta “espera” que Peter Jackson encontrou o gancho perfeito para provocar a resposta mais “adequada” ao momento: ao ver boa parte de sua floresta devastada pelos machados dos orcs de Saruman, Barbárvore desperta de sua natureza entesca e percebe que é hora de agir. Ou perecer inutilmente em pouco tempo.
Assim é iniciada a “última marcha dos Ents”. Ele diz: “É bem provável que estejamos marchando em rumo de nossa destruição”, mas o resultado vitorioso valoriza ainda mais a insistência dos hobbits que, pequeninos, despertaram os gigantes e poderosos Ents de um sono entorpecente que os embebia dentro da floresta. Lembram que um dos nomes de Barbárvore é Fangorn? Pois é, este ponto leva a uma interessante reflexão: Merry e Pippin conversam e convencem apenas um Ent de que é o momento de lutar. Mas este não era qualquer Ent, mas sim Barbárvore, Fangorn, o espírito da floresta. O mais antigo, uma espécie de pai de todos, que a todos representava e sentiu, primeiro, a dor que todos os outros sentiriam ao passar pela extensão desmatada.
De certo modo, tudo que Merry e Pippin contaram ao velho Ent era contado também a toda a floresta, que reagiu da maneira como podia. No livro, os Ents marcham em direção a Isengard, e os huorns – as árvores que odiavam os orcs, seus carrascos – partiram em direção do Abismo do Helm, e deram cabo dos orcs que fugiam do contra-ataque dos homens de Rohan. Outro fato interessante, no filme, Saruman invoca a força da indústria e do metal como arma para governar o mundo e derrotar seus inimigos. Porém, quem o derrota são as boas e velhas árvores, que lançam pedras e aproveitam a força da água em seu furioso ataque à grande “fábrica de guerra de Saruman”.
Infelizmente, o mundo de hoje não conta com um velho espírito que fale por nós e posso abrir vários olhos ao mesmo tempo para uma situação inaceitável, maléfica e que só tende a piorar. A mudança já começou, e foi no coração de muitas pessoas que entenderam esse recado – seja vindo da música, da literatura, ou do cinema – e começaram a mudar suas próprias posturas. Se não iniciarmos a primeira parte da tríade, as demais não têm como serem realizadas.
Muitos são os caminhos que podemos trilhar para atingir esse objetivo, mas cabe ao discernimento e à vontade de cada um escolher o melhor. O meu, com certeza, já foi escolhido, pelo menos seu começo sim. O desenvolvimento e a conclusão, porém, não há como antecipar. A intenção é boa, a garra é vívida e desistir não é uma opção.
Uma última citação, mas dessa vez do filme Galaxy Quest – Heróis Fora de Órbita:
“Never Give Up, Never Surrender”

Feliz Ano Novo!

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