Prólogo
Um Dia Incomum
William estava de férias e aproveitava as frivolidades da vida num sossegado passeio de metrô. Ele adorava dirigir, mas, mesmo as modernas auto-pistas de São Paulo, não permitiam que ele praticasse um de seus passatempos prediletos: ler livros antigos. Se bem que essa tarefa é um tanto quanto árdua com o som dos banners animados dentro dos vagões, com a conversa dos passageiros e com o volume dos rádios portáteis que os adolescentes adoram usar. Eles podem ser diminutos, mas o som melhora – e aumenta – a cada novo modelo. Bem, é o preço da evolução, pensou William.
Muitas pessoas iam e viam e nenhuma delas reparava que nas mãos de William havia um antigo, e, até certo ponto, raro exemplar encadernado com capa de couro, já gasta pelo manuseio. Na capa lia-se 20.000 Léguas Submarinas, de Júlio Verne. Numa época em que os jovens só sabiam o que era exibido nas vídeo-telas ou que chegava a eles condensadas mensagens de noticiários das agências de notícias – que, diga-se de passagem, contavam apenas notícias superficiais e ninguém mais lembrava de seu conteúdo 15 minutos após a leitura – era surpreendente encontrar alguém lendo um antiquado livro impresso.
Não que William fosse muito jovem, mas sua fisionomia pouco aparentava seus 35 anos e sua experiência de vida – pessoal e profissional. Qualquer um que notasse pensaria apenas que fosse mais um excêntrico morador da cidade e nem imaginaria que estava diante de um dos cientistas mais importantes do mundo. Mas ali ele queria mesmo ser o homem comum, com preocupações comuns e apenas com sua leitura incomum. Para deles pode ser, ria consigo mesmo enquanto mergulhava na trajetória do Nautilus e de seu intrépido Capitão Nemo.
O dia era claro e a luz do sol invadia o vagão do metrô – que agora percorria seu trecho na superfície – e emprestava um ar de nostalgia ao local. William lembrava de sua infância nos antigos trens indo para o mesmo endereço onde hoje viviam apenas seus pais. Há muito havia deixado sua antiga casa, mas sempre voltava. Seu lar atual estava há milhas dali, no hemisfério norte, e ele não trocaria o calor paulistano pela neve de Nova Iorque por nada naquele momento.
E aquele era o seu momento.
Era uma sexta-feira calma, ensolarada, e bem tranqüila. Apenas mais um dia no calendário de muitas pessoas, mais um dia na vida da Humanidade, mais uma volta que a Terra dava em torno de seu eixo. Porém, foi nesta sexta-feira que o mundo mudou. Ou melhor, foi mudado, mas agora isso não vem ao caso.
Os rumos da civilização foram modificados naquele dia. E no centro desse rodamoinho de novidades, decisões, revelações e mudanças estava aquele homem que, inadvertidamente, lia seu livro de ficção científica no momento em que tudo aconteceu.
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Não que houvesse ocorrido algum cataclisma capaz de alterar a geografia do planeta ou exterminar a espécie humana, mas sim um dos maiores sonhos da Humanidade que havia se concretizado para bilhões de espectadores pasmos diante do que lhes era exibido em todas as telas possíveis no planeta. Os motoristas viram seus painéis de tráfego deixarem de lado o mapa das ruas, os jornais eletrônicos foram suspensos, as televisões e aparelhos de projeção, enfim, todos e quaisquer equipamentos capazes de reproduzir imagem ou som, foram invadidos por uma única transmissão: o logotipo da CNN, o maior conglomerado de comunicação do mundo. As pessoas olhavam atônitas para suas telas, pois sabiam que algo de extraordinário, e de âmbito mundial, estava para brotar em imagem e som a qualquer momento, já que em boletins urgentes “normais” o que se via eram os logotipos das emissoras locais.
Naquele momento, poucas pessoas estavam distantes de algum tipo de tela, já que até os eletrodomésticos possuíam seus sistemas de controle conectados às extensas redes de comunicação que se espalhavam cada vez mais rapidamente pelo planeta. As crianças protestaram, já que muitos viram suas telas de jogos serem abruptamente congeladas. Nem mesmo os aqueles modernos jogos de bolso escaparam da transmissão. Enfim, academias, escritórios, lojas, cidades, países, o mundo todo, parou – ou pelo menos diminuiu o ritmo – por causa de um simples logotipo.
Também pudera, na última vez em que isso ocorreu – 15 anos antes - e muita gente não deu a devida importância, o que se viu foram as primeiras imagens transmitidas diretamente da base humana Face Divina I, o centro de operações da primeira expedição tripulada a Marte. A Humanidade demorou mais do que imaginava para, finalmente, colocar os pés no Planeta Vermelho, mas a tarefa foi concluída e esperava-se que dentro de 70 anos a colônia Revival estaria apta a receber moradores de todas as partes do mundo, inclusive dos tripulantes da estação espacial Freedom, até então, nossa maior conquista no espaço.
Os relatos dos astronautas foram surpreendentes. As imagens, embora falhas em alguns pontos, mostravam as maravilhosas paisagens de um planeta alienígena e que não era retratada por um filme de ficção científica. Mesmo que se assemelhasse muito a uma produção do gênero. Até demais para algumas pessoas. Mas o fato é que a Humanidade ficou perplexa, começou a colonização espacial depois de longas décadas de pesquisa de agências espaciais do mundo todo, sob a liderança da Agência Espacial Mundial (AEM) – uma organização que recruta os melhores de todos os países para otimizar os resultados do projeto e não responde a nenhum governo. Ela enfrentou a poderosa NASA, que, embora enfraquecida pelos anos, ainda era a mais forte no setor, para retirar parte de seu pessoal.
Pois bem, Marte – assim como a Lua havia sido no século passado – deixou de ser um sonho de criança e agora fazia parte da realidade. O Homem pisou no planeta vermelho, mas isso aconteceu dez anos atrás e, novamente, as pessoas viam-se diante do sinal que, mais uma vez, os surpreenderia. Muitos pensaram ser alguma tragédia na colônia marciana ou até mesmo algum problema sério com a estação espacial – inexplicavelmente, nos últimos anos o interesse pelo espaço cresceu de novo, o que foi bom para os projetos espaciais que receberam mais fundos para suas pesquisas – ou até mesmo alguma guerra repentina, já que não se via um grande conflito há muito tempo.
A transmissão começou em todos os pontos do mundo.
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Os banners de anúncios do metrô também foram tomados pela transmissão especial. Em instantes o murmurinho dos passageiros chamou a atenção de William, que fechou seu livro e tentou ver, ou pelo menos ouvir, o que se passava no cartaz eletrônico mais próximo. Pela circunstancia era algo relevante e parece que deixar de ver a esta transmissão não era uma opção.
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O que se seguiu após o desaparecimento do logotipo foi uma série de imagens de cidades conhecidas, como Nova Iorque, Paris e Londres. Todas pareciam em perfeito estado, mas o povo temia por algo realmente ruim e já que as imagens eram da Terra, algo as afetaria rapidamente.
O resultado foi mais imediato do que pensavam.
As cidades estavam, de algum modo, diferentes. O homem notou que Nova Iorque, especificamente, ganhara alguns edifícios e seu estilo estava um pouco modificado. Ele esteve na cidade há 3 dias e deveria voltar para lá no dia seguinte, depois de sua curta folga. Um homem aparecia nas imagens apontando para lugares, pessoas e comparando o que parecia ser um exemplar recente de jornal com um que acabara de comprar numa banca qualquer.
As imagens foram seguidas pelo discurso de um porta-voz da AEM. Ele conhecia o homem, era Peter Stanton, chefe do departamento de ciência óptica da AEM.
Todos que tiveram tempo colocaram seus pequenos fones de ouvido para ouvir o discurso que se seguiria em sua própria língua. O sistema era muito complexo e eficaz, pois a interação da comunicação era total e os tradutores de cada país estavam a postos nas filiais da emissora.
“Cidadãos do Mundo”, disse Stanton, imediatamente identificado na tela. “Hoje a Humanidade avança mais um passo, aliás, muitos passos, na direção de sua evolução e aperfeiçoamento.”
E o discurso continuou. “As imagens que vocês acabaram de ver foram registradas pelo coronel Steve Prescott, um voluntário que, a serviço da AEM, participou de nossa mais arrojada descoberta: a Viagem no Tempo!”, anunciou Staton.
Pouca gente se lembrava, mas há cerca de 15 anos a AEM havia anunciado o início das pesquisas para a viagem temporal, mas a mídia – seguindo rigorosa sugestão da agência – deu pouca importância ao fato, já que, naquela época, nada de concreto havia, a não ser teorias que desde o século passado ocuparam as mesas de pesquisadores de vários países. A chegada a Marte só ajudou a esconder o assunto. Até agora.
Os passageiros começaram a se agitar com o inusitado anúncio, algo que deixaram as páginas dos livros digitais para a vida real. Para eles, porém, essa descoberta deveria ser apenas motivo de discussões em rodas de amigos, assim como a colonização de Marte foi 15 anos antes. Mas o que todas essas pessoas não sabiam, era que, daquele dia em diante, o ordem mundial seria alterada e as vidas dos bilhões de habitantes da Terra ganharia um novo e desconhecido rumo. Pelo menos para o grande público.
O público estava maravilhado com tudo aquilo. Era possível, não só prever o futuro, mas também conferir in locu suas realizações.
“Embora nossa primeira viagem tenha sido curta, o experimento serviu para mostrar que o equipamento funciona perfeitamente e o cel. Prescott está aqui conosco para contar um pouco de sua aventura. Ele foi instruído a não travar contato com as pessoas do futuro e a não trazer nada de lá, a não ser as imagens que todo o mundo acabou de ver. Ainda não conhecemos a real extensão do impacto que um possível contato com outra época pode causar ao futuro, ou mesmo ao nosso presente. O projeto foi desenvolvido pelos melhores técnicos da AEM longe dos olhos da imprensa para que falsas expectativas não fossem alimentadas. E hoje, felizmente, falo a vocês não sobre um sonho ou uma teoria, mas sobre uma realidade”, dizia o sorridente Stanton, que se preparou para passar o microfone ao militar que estava a seu lado.
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William continuou a prestar atenção ao noticiário e acompanhou o melhor que pode mais uma seqüência de imagens que parecia, de acordo com as informações no vídeo, mostrar Nova Iorque no ano 2150, ou seja, 35 anos no futuro. Pessoas com roupas diferentes, carros avançados e até autoestradas para veículos equipados com repulsores eram vistas pelas imagens captadas pelo viajante/cinegrafista.
A fisionomia de William era um verdadeiro mistério. Uma mescla de terror com total descrença no que acabara de ver e ouvir. Expressões intercalavam-se em sua face, enquanto algumas gotas de suor escorregavam de sua testa. Se ele estivesse preocupado, teria ficado feliz ao saber que ninguém notou sua reação. Todos tinham olhos apenas para a novidade
Eu não acredito nisso, pensou com dificuldade.
Enquanto mais imagens eram exibidas e os passageiros estavam em estado de êxtase, o trem parou, William pegou suas coisas e desceu rapidamente. Um sentimento de urgência crescia dentro dele. Por trás da figura pacata e sossegada que ia visitar os pais, havia o cientista, um dos principais coordenadores de projetos da AEM e, entre outras responsabilidades, encarregado pelo projeto da Viagem no Tempo. Ele precisava chegar à sede da AEM o mais rápido possível. Alguém teria que dar boas explicações. E coitado de quem fosse escolhido para fazer isso.
Por onde passava notava as pessoas hipnotizadas pelos relatos do Viajante do Tempo e pela repetição das imagens por ele feitas. O que William não imaginava era que essa situação hipnotizante havia contagiado todo o mundo, como mais tarde os jornais noticiaram em massa. O evento Marte parecia brincadeira de criança perto da Viagem no Tempo. E assim a manhã de sexta-feira passou, as pessoas foram trabalhar – mas muitos não fizeram nada além de reunir os colegas de trabalho e discutir o assunto do momento – e o dia terminou calmamente, pelo menos para a maioria dos habitantes do planeta Terra.
FIM DO PRÓLOGO
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