Escolhas no Crepúsculo
Minha fé já não é a mesma de outros tempos. Nesses anos todos olhei muito para o abismo, até que ele finalmente olhou de volta. Não foi nada bonito, mas, no fundo, era o que eu queria: saber a verdade. E o que encontrei não era nada belo, nem misterioso. Era tudo muito frio, sem rodeios e tão horrível que não existem palavras capazes de descrever aqueles sentimentos, aquele horror. Hoje em dia nem fico mais com medo, nem mesmo olho assustado para a menor das sombras. Acabei me acostumando, mas não escolhi a cegueira, como alguns de meus colegas. Mantenho os olhos abertos – para luz e sombra.
Esta é minha vida, ou o que restou da vida que aprendi a amar. E hoje sinto falta.
Quando se abre o livro pela primeira vez e todas aquelas palavras saltam como notícias maravilhosas que garantirão nossa salvação é difícil ficar impassível. Mas, desde o princípio, sempre notei que cada boa nova era acompanhada por algo obscuro e, por muitas vezes, sombrio e gelado. Era apenas uma impressão, mas – infelizmente – era tudo verdade. Depois de anos lendo o livro sagrado, as escrituras e seguindo o caminho, finalmente, confrontei as sombras, e os que nela residem. Alguns vivem, outros por lá estão, nem aqui nem lá, nem em lugar nenhum.
Sempre ouvi falar da guerra entre arcanjos e demônios. Ela parecia ser bem plausível, mas, embora muitos não acreditem, é algo que nunca chegará a nós. Isso eu apenas senti, não tenho provas. Assim como aqueles que defendem o contrário também não têm. O que encontrei era muito pior, já que não havia nenhuma força arcana ao nosso lado: apenas a fé. E, devo dizer, nas horas mais difíceis ela fraqueja e é preciso muita perseverança para não cair diante do que se vê. Não é fácil.
Hoje, já nem sei mais se as pessoas que vi, os demônios que enfrentei, os amigos que perdi, mas mentiras que ocultei são verdade. Lembro de tudo em meio a uma névoa, ou à escuridão, realmente é difícil dividir. Vejo as pessoas na rua, caminhando em direção ao trabalho, ou comendo um hot dog, e, em algumas vezes, vejo seres horríveis ou apenas sombras escuras, com a ausência de cor, algo horrível até mesmo de se lembrar. Mas posso ter ficado senil depois de tudo isso. Não me surpreenderia.
Foi difícil aceitar a existência de tudo isso, por mais que o livro houvesse avisado. A fé era grande, mas no mundo moderno e tecnológico parecia não haver mais lugar para demônios, vampiros ou criaturas do gênero. Elas existem, porém. E estão por aí, onde menos esperamos – em plena luz do dia, numa lanchonete, dentro do metrô. Só não somos capazes de vê-las, embora alguns as sintam. Sou um deles. Ao menos fui.
Foi meu amigo Giulianno, um italiano bonachão, quem me mostrou a maioria destas coisas e me ensinou a combatê-las. Ao contrário do que os filmes mostram os vampiros, por exemplo, não são criaturas pirotécnicas e místicas com ares de efeitos especiais. São seres maldosos até aquela coisa podre que chamam de alma. Eles andam por aí, cometendo assassinatos, roubando almas e, nos piores casos, deixando os pobres coitados secos. Quase em pó. Afinal, é muito bonito ver “os sugadores de sangue” no cinema. Na vida real, é a essência que eles levam. Nada bonito de se ver. Para minha sorte, a princípio, eles não podem com a essência dos mais religiosos, ou dos padres, mas, mesmo assim, mataram muitos de nós – únicos capazes de dar cabo dos malditos. Nosso sangue é como água benta para eles. Como nos mataram? Bem, armas de fogo ou adagas dão conta do recado muito bem.
Nem mesmo as bruxas e bruxos resistiram. Embora a Igreja sempre os condenasse, eram eles os grandes defensores do nosso modo de vida. Foi duro ver como a guerra secreta que travaram com as trevas os eliminou quase totalmente da face da Terra. Conheci muitos deles, pessoas poderosas e decididas. E os vi, um a um, tombarem. Sempre tive a sensação de que com cada um deles um pouco do que acreditava e até mesmo um pouco da alegria e vida desse mundo partia.
Naquele tempo, minha fé e convicção eram suficientes para afastar e derrotar qualquer perigo. Mesmo vendo muitos colegas serem executados, mortos ou simplesmente desaparecerem, mantive minha crença e continuei na luta do dia a dia. Até que comecei a identificar o Mal mesmo sobre seus melhores disfarces.
Foram períodos difíceis e temerários. Tirei uma conclusão com isso: na verdade, era um estágio, para o grande combate que viria. Algo muito mais forte e os portadores do estandarte do inimigo seriam aqueles que mais amamos, sob falsas pretensões. Desafiar o Mal é fácil. Enfrentar aqueles que amamos não tem comparação. Mas isso fica para o final.
Esse período de luta, porém, é muito extenso e, talvez, eu conte outro dia. Sabe, o dia em que Giulianno foi assassinado foi muito triste e minha reação me amedronta até hoje. Lembrar do passado como referência é bom. Ter medo dele pode significar a perdição.
Hoje, sentado na minha cadeira e sentindo o leve toque do Sol em minha face, nem parece que já ela já esteve cheia de sangue, lama e suor. Tenho sonhos, sobre pessoas que não salvei, gente que vi morrer, e daqueles que deixei de ajudar.
Minha “preparação” – como resolvi chamar tudo aquilo– parece ter chegado ao fim e o verdadeiro desafio fez-se presente. Ontem de noite, enquanto dormia, senti coisas arrepiantes e, de alguma maneira, sabia que era chegada a hora. Acordei assustado e esperei pelo pior, mas nada aconteceu e o dia, mais uma vez, nasceu em esplendor.
Desde então tenho pensado em tudo aquilo, no que fiz, ou deixei de fazer, no que fui e no que me tornei. E, invariavelmente, parava num ponto: até onde vai minha fé? Teria eu forças para enfrentar a grande tarefa ou sucumbiria debilmente como um velho tolo?
Eis que, de súbito, a verdade que tanto busquei veio à tona, não na forma de iluminação divina, nem na escuridão das trevas. O abismo olhou de volta e quando notei, era eu mesmo quem me olhava. O Sol desapareceu e senti uma forte dor como se todos os meus pecados estivesse querendo rasgar o peito, arrombar minha existência e mostrar o quão corrupta minha existência fiel havia sido.
Entendi, por fim, que era a hora de avaliar o que havia sido e, em minha vã esperança, do que seria após aquele momento de provação. Não consegui me lembrar das escrituras do livro. Não conseguia me lembrar mais das pessoas, tudo que existia era o que eu sentia, pensava e acreditava. Minha fé, sim, ela estava lá. Forte e resistente como uma caixa forte. Talvez esse tenha sido o problema, ela estava tão bem guardada que não consegui abrir a caixa a tempo.
A única saída era confrontar os meus medos. Diretamente, sem nenhuma arma ou escudo. Todas as faces surgiram, as vozes, a cruz, as sombras. Tudo estava junto e, o que pareceu uma eternidade e deve ter ocorrido em instantes, como em toda boa história dramática, passou e, de alguma maneira, minha decisão havia sido tomada. Eu nem sabia ao certo qual era ela e sobre o que tinha que decidir, mas tinha feito.
Continuei naquela espécie de limbo, imaginando o que viria a seguir. Mas nenhuma maravilha aconteceu. Nem mesmo aquele arquiinimigo surgiu pelas costas me apunhalando, ou tentando sugar minha essência. Não era um enviado das sombras, nem mesmo um reles ladrão comum que decidiu invadir esta pobre casa.
Era o meu julgamento. A hora de por à prova tudo que acreditei durante minha vida. Um momento só meu, e havia passado.
Fechei os olhos. Para não mais abrir. Não naquele lugar. Não contra aqueles inimigos.
E ainda sem saber ao certo, qual fora minha decisão. A noite caiu e com ela, a escuridão.
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O nome da história teve participação da minha querida Silvia. Obrigado.
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