UMA LONGA NOITE 
Como a França é fria. Nunca imaginei que fosse assim. E ninguém falou nada sobre esse lugar durante o tempo em que ficamos na Inglaterra. Tudo bem que o treinamento militar coloca a gente nos lugares mais imundos, úmidos e frios que eles conhecem, mas nada é parecido com isso aqui.
Bem, até agora tudo que ensinaram no treinamento não bate com o que passamos. Não faz nem 24 horas que chegamos à Normandia e nem tudo é fácil como correr, cercar e tomar a posição. Aqui os inimigos são de verdade. As balas são de verdade. E as baixas são dolorosamente reais.
E a realidade, se é que pode haver algo desse tipo em meio ao caos dos morteiros explodindo por todos os lados, aos gritos dos companheiros feridos e à visão dos corpos daqueles que não deram tanta sorte como eu, é muito dura. O capitão Frank ordenou que ficássemos escondidos até que pudéssemos nos reagrupar. Mas ele disso isso ainda no avião, antes do salto na noite de ontem, mas é engraçado como ainda não clareou e parece que já faz tanto tempo que cheguei ao chão.
E, definitivamente, reagrupar por aqui não vai ser nada fácil, já que os schucrutes estão por todos os lados e todo mundo parece ter caído no lugar errado.
Mas vou seguir minhas ordens e continuar aqui, quieto na minha posição até algum amigo aparecer e assim seguirmos juntos. E o frio continua me incomodando. E muito. Quando me alistei sonhava em ser um herói e voltar para casa cheio de medalhas, mas parece que não vai ser tão fácil sair daqui inteiro. E lembro disso há cada instante, pois tem um para-quedas bem atrás de mim, e pendurado nele o corpo do coitado que nem sequer conseguiu pisar no chão antes de ser metralhado pelos schucrutes. Malditos, alemães!
Engraçado, não lembro de te-lo visto aí quando cheguei. Bem, ele deve ter sido pego pelas baterias anti-aéreas. Uma delas quase acabou comigo. Nem sei como escapei. Fico imaginando quantos morreram antes mesmo de sair do avião. Muitos foram abatidos e os caras não podiam fazer nada. Meu Deus. Mas é melhor eu parar de pensar besteiras e ficar atento, isto é guerra e estou aqui para cumprir minhas ordens. E tentar sair vivo.
Chega de devaneios, preciso ficar atento.
O ar gélido da noite passa pelo meu rosto mais uma vez e parece que ele anunciava a chegada de um inimigo. Um soldado. Um não, dois deles, bem na minha frente. Eles ainda não me viram. É melhor eu conferir a minha arma. E em silêncio.
Carregada e armada. Ufa, tudo certo. Será que vou conseguir? Matar alguém não deve ser nada fácil, ainda mais com todos esses gritos e explosões, tenho medo de errar e acabar como o cara do para-quedas. Eles continuam vindo, vou tentar me esconder. Acho que é melhor. E eles continuam se aproximando. O som das pesadas botas de couro pisando na lama misturada com sangue é cada vez mais alto, mas, ao mesmo tempo, distante. Como se fosse um eco. Nossa, acho que a explosão pegou mais perto do que eu imaginava, será que fiquei surdo e nem notei? Bom, ainda posso ver. E atirar. É isso que importa, pelo menos agora.
Se eles passarem por mim só preciso de dois tiros e caso encerrado. Que droga, capitão, onde está você? Onde está todo mundo, será que só eu cai no lugar errado? Concentre-se. Rápido.
Mas é impossível. Vozes de minha família dizendo para eu tomar cuidado, do capitão lembrando a todos dos detalhes do ponto de encontro, e a imagem do pobre coitado pendurado sobre o meu esconderijo parecem me atormentar.
Eles estão muito calmos e pelo jeito nem notaram que estou aqui. Essa é minha vantagem, posso vencê-los. É só lembrar do treinamento e meu pescoço estará salvo. Por que será que ninguém pensa em momentos como esse na hora de correr feito um maluco para a fila do alistamento. Bom, tudo parece tão emocionante e o país precisava da gente. Tínhamos de fazer isso, para proteger nossas famílias. E, bem, parecia a coisa certa a fazer. No início.
Família. Ah, essas vozes, que não se calam na minha mente. Mas isso não é de tudo ruim, pois lembro de cada uma delas. É como se estivessem tão próximas, mas sei que estão há milhas de distância. Do outro lado do Atlântico, pensando em mim, pois, a essa hora, os jornais já devem ter chegado às bancas avisando a todos da grande invasão.
Como sinto saudades. Há mais de 2 anos que não vejo nenhum deles. Só cartas. E a última que recebi não pude abrir, pois não havia tempo, pois foi pouco antes do embarque. Ela está aqui no bolso, mas depois penso nela. Os alemães estão chegando.
E eles parecem gargalhar. Eles olham para os corpos, americanos ou não, e começam a rir. Ainda não me viram. Ainda bem. Acho que vai dar tudo certo.
Foi aí que eles pararam. E as gargalhadas desapareceram. De súbito, senti um frio na espinha. Fui avistado? Ou havia algo acontecendo e eu não consegui ver?
O estranho é que eles não pegaram suas armas, mas continuaram a olhar na minha direção. Mas não se moveram. E as vozes voltaram, com mais intensidade. Mas pareciam todas tristes, mas não consegui entender o motivo. Voltei a atenção para os alemães que, mais uma vez, estavam gargalhando e caminhando.
Meu Deus. Devo estar delirando, deve ser isso. Não cochilei sequer um minuto desde que cheguei ao chão e isso deve estar me afetando. Depois que me livrar desses dois engraçadinhos acho que vou tirar um cochilo. E quem sabe ler minha carta. É, uma boa idéia. Assim, que sabe, a preocupação e as vozes desaparecem.
É, agora não tem mais volta. Eles estão quase na minha posição. Hora de decidir o que fazer. E é melhor que eu tome a decisão correta.
Isso seus schucrutes babacas, cheguem mais perto, mais perto, vocês vão pagar por terem começado essa guerra e por terem matado meus colegas indefesos.
O local que escolhi para me proteger é um pequeno desnível que servia como proteção e era ideal para atirar sem ser visto. Justamente o que eu precisava. Meu rifle está pronto e agora eu só preciso livrar-me das vozes e do medo que agora começou a me assolar. O ar continua gélido e o barulho das explosões diminuiu bastante. É, os rapazes estão tirando os schucrutes de suas defesas e as mortes devem estar diminuindo a essa altura. O céu já não está mais cheio de para-quedistas e parece que o mundo se resume a eu e os dois alemães. E em instantes será só eu.
Que droga, pare de pensar e faça alguma coisa logo. 
Mirei e quando o dedo estava puxando o gatilho, pude notar que eles voltaram a rir e apontavam para mim. Será que eram schucrutes bêbados? Se fosse isso, eles já eram e eu estava salvo. Aí um deles puxou um revolver e atirou. Não sei porque não atirei antes, mas o tiro não era para mim. Era para o coitado pendurado no para-quedas. Nem parei para olhar, atirei uma vez, saí do esconderijo e continuei atirando nos dois bastardos.
Ninguém ia se divertir às custas de um soldado morto na minha presença. Continuei atirando até que o pente do meu fusil estivesse vazio. Meus gritos, finalmente, espantaram as vozes, que me deixaram por um tempo, mas elas voltaram quando fiquei petrificado ao notar que os dois não haviam sido atingidos e eu atirei praticamente à queima-roupa.
Eles me olhavam. Agora em silêncio. Nada de gargalhadas. Nada de tiros. Apenas dois semblantes assustados e incrédulos. Eu devia estar do mesmo jeito, mas nunca soube ao certo.
Eles tocaram nos lugares onde as balas deveriam ter entrado e não encontraram nem vestígios dos disparos. Eu puxei meu revólver e disparei mais 5 vezes. E, mais uma vez, nada aconteceu. Com certeza essa foi minha vez de ficar assustado, um arrepio frio como gelo atingiu minha nuca e fiquei apavorado quando ouvi novamente suas gargalhadas, que agora eram aterradoras e intimidantes. Nem dei muita bola, mas os uniformes deles pareciam diferentes e a lama de suas roupas havia desaparecido. Nem pareciam mais soldados, mas os gritos eram apavorantes demais para me deixar em paz.
Eles se aproximaram. Olharam para mim. E olhei de volta. Olhos nos olhos. Não tinha forças para entrar em pânico, no reflexo dos olhos do soldado mais alto eu não via nada além de um escuro sem fim. Por alguns instantes, ele tirou os olhos de mim e voltou a verificar o soldado morto na árvore.
Olhamo-nos novamente e, após encararem-se mais uma vez, os dois soltaram gritos horríveis e começaram a correr pelo campo enlamaçado. Nem me dei ao trabalho de atirar novamente. Sabia que não ia funcionar. Só não sabia ao certo o que acabara de acontecer. Nunca fui muito crente nesse tipo de coisa, mas não podia simplesmente ignorar o que havia acabado de acontecer.
Ou aqueles caras eram imunes a balas ou eles já experimentaram seu gostinho e vieram me encontrar. Não sei porque raios isso aconteceu. Nem notei que minhas pernas estavam tremendo e que eu mal conseguia segurar o revolver descarregado.
É melhor sentar e esperar um pouco.
Acho que cochilei, mas acordei pensando que tudo não passava de um sonho. Mas a lama está aqui, por toda a parte, a noite está acabando, finalmente, e as vozes de meus parentes continuam a me atormentar. Saudade é uma coisa séria. Vou escrever isso na próxima carta para mamãe. Ela vai ficar feliz em saber que estou bem e com saudades.
Quer saber, acho que vou ler a minha carta e tentar voltar ao mundo real. Devo ter tido um pesadelo com aqueles dois, só não sei como meu rifle está descarregado. Penso nisso mais tarde.
Coloquei a mão no bolso para retirar o pequeno envelope, mas não encontrei nada. E uma das vozes pareceu gritar nesse instante. Fiquei perdido e vasculhei os outros bolsos com medo de que o grito voltasse. Ainda sentia muito frio e algo me incomodava mais que a lama em toda a minha roupa. E nada da carta.
Outro grito e parecia vir da minha retaguarda, virei apontando a arma para seja lá o que estivesse ali. E dei de cara com o soldado morto. Com tudo seu equipamento, e ainda preso às cordas do para-quedas. Algo me fez caminhar em sua direção. Pensei que seria bom tira-lo dali, pelo menos assim ninguém ia poder brincar de tiro ao alvo com ele. Mas não consegui me aproximar dele. Seu rosto, ou o que sobrou dele, estava sujo de sangue e embrulhou meu estômago.
Mas outro grito me impulsionou. Não sei por que procurei a carta novamente, mas não encontrei. E, finalmente, senti algo de familiar naquela situação. Mas eu nunca havia retirado ninguém de uma árvore, ainda mais alguém com um envelope pardo no bol....so... direit..t.. to.
As vozes retornaram e pude sentir minha mãe chorando. Meu irmão inconsolado e todos os outros tristes. Algo de ruim havia acontecido, mas não podia ser. Eu estava ali, havia guardado a posição e afugentado aqueles dois fantasmas alemães. Fantasmas.
Fantasmas não existem. Foi um sonho. Não pode ser.
Peguei a carta do casaco ensangüentado e nada pude fazer quando li o destinatário do envelope. As vozes voltaram, os gritos dos alemães assustados misturaram-se com outros que ouvi em ocasiões diferentes e o ar gelado voltou a soprar. Não, não podia ser. Isso não existe, eu estou bem e tenho uma guerra pela frente.
Mas o nome no casaco não deixava dúvidas. Sargento William Jones Jr., Companhia Dog, 506.º Batalhão de Paratroopers. Era eu. Eu estava morto. Tentei abrir o envelope, mas não conseguia. Era como se eu não pudesse interferir com aquilo tudo.
As vozes voltaram e algo tocou no meu ombro.
- Capitão Frank, não pode ser!
- Fique em paz , Will. Nossa guerra acabou, vamos para casa.
- Não, não pode ser. Eu estou vivo! Eu estou vivo!, quero voltar para a minha casa.
- Will, acabou não há nada que possamos fazer. Os schucrutes acabaram com a gente antes mesmo de descermos. Poucos escaparam, e já faz muito tempo. Vim aqui, pois pediram para que vir te buscar. Você não precisa continuar sofrendo por isso. Não foi culpa sua.
- Mas não pode ser, eu ainda posso ajudar a vencer a guerra. Sou um bom soldado.
- Will, a guerra acabou há mais de 100 anos e você nunca quis voltar. Nós ganhamos, mas esta é sua última chance, filho. Deixe isso para trás e venha comigo.
- Mas, mas, a carta, preciso responder, preciso.. avisar..
- William, para onde vamos você poderá fazer isso e muito mais. Só deixe isso para trás, não é necessário ficar sofrendo e atormentando um mundo do qual você não faz mais parte.
E ao olhar para aquele semblante paternal e severo com o qual convivi durante tanto tempo pude notar que ele estava certo, mas minha vontade de recuperar o que era meu era muito grande. Só que tudo tem seu tempo e mesmo minha insistência deve ter estourado o limite.
Agora me lembro, durante todos esses anos, fui assombrado pelos rostos dos homens que me mataram e os persegui até que outros tomassem seus lugares, seus uniformes e fossem os culpados da morte de um pobre soldado que não teve chance de fazer nada pelo seu pais, pela sua família ou pelo seu amor, que ficou esquecido no tempo e interrompido por uma guerra estúpida.
- Capitão Frank, senhor!
- Sim, Will.
- Mostre o caminho, senhor.
- Esqueça o senhor, sua tarefa agora é outra. Apenas me siga.
E, então, seguimos, em direção ao amanhã, pois aquela noite durou tempo demais e a escuridão não fazia mais parte do meu desejo. Pelo menos a lama e a ar recalcitrante já eram lembranças distantes. Espero que o amanhã seja mais limpo e aconchegante. Quem sabe, até encontre algumas respostas. 
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