sexta-feira, junho 29, 2007

A Primeira Decisão

A Primeira Decisão

Por mais que os anos tenham mostrado a Beregond que ser bardo era sua missão, nem sempre foi assim tão fácil levar suas palavras aos ouvidos desconfiados de outras pessoas. Na verdade, era difícil até mesmo falar com sua própria voz e transmitir tudo aquilo que sua inspiração lhe trazia. Depois de um dia difícil, no qual vários aprendizes haviam se mostrado contrários ao modo antigo e aos conceitos das velhas histórias, ele decidiu contar uma nova passagem de sua vida. O dia em que encontrou a inspiração.

Foi bem fácil lembrar, novamente, da casa de seu pai. Desta vez, porém, não havia nenhuma lição que seus pais pudessem lhe transmitir. Aquela era sua hora, única e exclusiva dele. Mas, como tudo na vida, Beregond só perceberia a singularidade daquele momento mais tarde.

Seu pai havia acabado de voltar de uma caçada, que terminou com uma breve reunião dos chefes de família de Tara. Havia um rebuliço envolvendo rumores de guerra ao Norte e ao Leste, mas aquela terra era afortunada e poucos de seus filhos perdiam a vida em batalhas, já que poucas aconteciam naquelas paragens. Trouxera consigo boa carne e algumas frutas que colheu, como de costume, no caminho de volta.

O fogo já estava aceso e, quando o jovem Beregond desceu da árvore que explorava no bosque, faltava pouco para que o cervo lhes fornecesse alimento para aquela noite. Beregond limitou-se a olhar para o grande espeto que girava sobre as labaredas. Ouviu um pio e, pela primeira vez, encontrou seu amigo Pardal. Ele repousava sobre a janela e apenas observava. Mas, como muita coisa naquela noite, o Pardal ainda era um pequeno detalhe.

Seus pais discutiam alegremente sobre os planos para a próxima estação, porém, um desacordo acabou com a alegria e o clima tenso incomodou Beregond. Sem saber o real motivo, ele sabia como resolver aquele impasse, que, a seu ver, era algo bem simples. Porém, sempre havia ficado de fora de discussões dos adultos – não importava se envolvessem seus pais ou os líderes de Tara nas reuniões na cidade.

Uma tristeza muito grande tomou conta do bardo. Ele continuou sentado e pensativo enquanto acompanhava o cervo sobre o fogo. Já havia pedido permissão ao espírito do animal para que sua família se alimentasse uma vez, mas, sentiu que uma nova benção era necessária, já que suas preces sempre levavam como justificativa o clima de harmonia com o qual sua família faria a refeição.

A discussão aconteceu por conta do último inverno, que castigou a casa de Beregond e tornou a vida muito difícil por causa do frio e da neve que entrava por algumas frestas na madeira. O pai de Beregond queria construir uma nova casa, menor, mas num local menos castigado pela nevasca para passarem os invernos. Sua mãe, porém, relutava por precisar ficar longe de seus próprios pais e irmãos, que ali moravam.

Beregond lembrava-se muito bem daquele inverno. A comida não faltava, mas era difícil dormir, os dedos doíam e não havia pele que os protegesse do rigor do frio. O jovem sabia que algo precisaria ser feito. Seu pai adorava construir coisas, melhorar o que havia feito e sempre se adaptava aos novos desafios. Sua mãe, por outro lado, tinha conceitos muito arraigados, tinha medo de viver longe da família e tinha medo do novo, do que não pudesse controlar. De certa forma, ambos se completavam, mas essa completude começava a causar problemas.

No dia seguinte, no mesmo horário, o jantar estava posto. Embora o cheiro do ensopado estivesse delicioso, não havia aquele lampejo de alegria nas conversas. Apenas um silêncio incômodo envolvia a todos. Beregond havia passado o dia no Bosque onde, pela primeira vez, o Pardal se apresentou. Eles conversaram sobre as criaturas do lugar e o jovem perguntou a seu novo amigo sobre o que fazer. O pássaro alçou vôo, girou ao redor da copa das árvores e, minutos depois, pousou novamente ao lado de Beregond.

Sua resposta veio em seguida.

– Os pássaros migram para o Sul, com o frio. É nossa natureza pura e simples. Foi assim com nossos ancestrais e será assim com nossos filhos.

Beregond ouviu com cuidado, fez mais algumas perguntas e ambos começaram a rir com os alegres relatos do passarinho contador de histórias.

O silêncio persistia à mesa. Embaixo de sua cadeira, Beregond carregava um pacote. Propositalmente, encostou no embrulho como pé para chamar a atenção. Sua mãe mordeu a isca. Ele, receoso e preocupado com o que estava para fazer, engoliu seco, olhou para baixo e começou.

– Ouvi vocês brigarem ontem. E meu coração encheu-se de tristeza. Passei o dia pensando para ter mais clareza. E dizer o que digo agora com toda certeza – rimas eram difíceis, mas o Druida sempre dizia que funcionavam para chamar a atenção. E funcionou, seu pai começou a prestar atenção logo depois da primeira frase e agora ambos olhavam fixos para o rapaz. – Não devemos agir com tanta frieza e, tampouco, temos o direito de tirar de nossa vida toda a beleza. O inverno é obra da mãe natureza e é devemos admirar sua pureza, e não amaldiçoá-lo por nossa avareza.

Foi a vez do pai falar. – O que quer dizer com isso, meu filho? E o que tem embaixo da cadeira?

– O Druida sempre ensinou que precisamos viver em harmonia e que ela começa aqui. Dentro de casa. Como vou conseguir continuar o treinamento se não existe paz em meu próprio lar?

Pai e mãe permaneciam em silêncio.

– O que tenho aqui é a solução. Ela é simples e pode não funcionar tão bem, mas é um começo. Acho que precisamos de um novo começo, mais unido.

E, dizendo isso, retirou o pacote e colocou-o sobre a mesa.

– O inverno é frio e todos sofremos com ele nessa casa, que sempre será nosso lar. Mas, assim como tudo na natureza, precisamos nos adaptar. Assim como os pássaros que vão para o Sul quando o inverno chega, nós também podemos ir para onde papai sugeriu. Tenho certeza que ele construirá uma casa boa e gostosa apenas para o inverno. Aí teremos duas casas! Não é bom?

Os adultos limitavam-se a trocar olhares.

– Mas mamãe tem medo de ficar longe do vovô e da vovó durante todo o inverno, por isso fiz isso – e abriu o pacote.

Os olhos de sua mãe ficaram esbugalhados. Dois retratos e um par de botas de neve.

– Para que isso, meu filho? – perguntou a matriarca.

– Com as fotos do vovô e da vovó na parede da casa nova você não vai sentir tanta saudade deles. E com as botas eu posso levar cartas suas para a vovó uma vez por semana ou ir pedir ajuda, se precisarmos. Além disso – olhou para o batente da janela – o Pardal também pode nos ajudar.

Todos olharam e lá estava o pequeno pássaro. Ele deu um pio e voou para longe. Embora fizesse sentido na história do garoto, os adultos não acreditaram na parte do Pardal ajudar.

– Filho, é perigoso sair sozinho durante o inverno. Mas a idéia das fotos é muito boa – respondeu o pai. Sua mãe tinha lágrimas nos olhos, pois segurava as imagens e admirava a dedicação do filho.

– Você fez tudo isso por nós? – e olhou para o marido enquanto perguntava.

– Fiz isso por todos nós, e pelo mundo. Não pode haver paz lá fora se, primeiro, não existir paz aqui dentro. E, pai, o Pardal pode ajudar sim, ele...

Toc, Toc, Toc.

Não era comum receber visitas àquela hora, por isso, todos olharam.

O pai de Beregond foi até a porta e, quando abriu, foi surpreendido pela presença de Samildarach, o Druida de Tara.

– Boa noite, meus amigos. Boa noite, Aprendiz – dirigiu os olhos a Beregond – Os deuses me dizem que preciso falar com alguém desta casa. Existe algum problema em que possa ajudá-los? – disse o Druida.

Sorrindo, e segurando a mão de sua mulher, o pai de Beregond respondeu. – O problema existia, Samildarach, mas foi nosso filho que solucionou.

Ele estava prestes a começar a contar a história quando o Druida o interrompeu.

– Não precisa contar, meu caro, já fui informado de tudo que o Aprendiz fez.

– Mas como? – indagou indignado.

– Meu amiguinho aqui levou a notícia e me chamou – e apontou para o Pardal que, agora, repousava em seu ombro.

Uma vez mais, os pais de Beregond ficaram boquiabertos.

O garoto, porém, limitava-se a olhar tudo o que acontecia.

– Beregond, venha até aqui – ordenou o Druida, que o treinava há cinco anos.

– Sim, senhor.

– As notícias do Bosque alcançaram meus ouvidos e seus atos falam por si só. Os deuses lhe favorecem e sua inspiração se torna cada vez mais impressionante. A partir de amanhã, ninguém mais poderá chamá-lo de Aprendiz, jovem Bardo.

Os olhos de Beregond encheram-se de lágrimas ao ser chamado de Bardo pela primeira vez. Ele deveria conseguir o título em mais alguns anos, mas algo extraordinário aconteceu ao encontrar o Pardal e tudo aconteceu mais rápido.

– O... oo... brigado, senhor.

– Que essa seja a última gaguejada, garoto. Bardos não podem gaguejar – brincou o Druida.

Um leve sorrido tomou o rosto de todos.

Uma vez mais, o Pardal piou e partiu. Seus pais, Samildarach e ele mesmo sentaram-se para jantar e o ensopado, realmente, estava incrivelmente delicioso.

E foi assim que a voz de Beregond foi ouvida pela primeira vez, seu julgamento trouxe a paz e orgulho para seus pais.

Naquele dia, ele aprendeu a superar seus medos, enfrentou um problema que seria muito maior no futuro e conquistou sua liberdade. Com simplicidade, força de vontade e amor por sua família.

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