segunda-feira, junho 12, 2006

Heróis: formas iguais, tempos diferentes.

“O objetivo moral do heroísmo é o de salvar um povo, uma pessoa, ou defender uma idéia. O herói se sacrifica por algo, aí está a moralidade da coisa”
- Joseph Campbell


Ao ver mais uma versão do herói norte-americano no cinema, é extremamente relevante pensar em como e por que estes super-homens são criados em momentos importantes da evolução de nossa sociedade. Eles representam nossos sonhos, aspirações e quase sempre salvam o mundo. Foi o estudioso Joseph Campbell que, com seu, Poder do Mito, vinculou de maneira marcante a chamada Jornada do Herói a nossos personagens prediletos e é sob a luz de seus conceitos, assim como outros estudiosos, que podemos falar da evolução dos heróis, e suas motivações, nos últimos 30 anos.

Quando Luke Skywalker foi surgiu em 1977, ele era um jovem idealista, sonhador, tímido e receoso em abandonar seus Tios Owen e Beru. A chegada de R2-D2 e C-3PO e mensagem de socorro da princesa Leia não foram o suficiente para afastá-lo de suas obrigações na fazenda e motivá-lo a seguir os passos de Biggs e se tornar um piloto. Tão pouco o convite de Obi-Wan para que seguisse os caminhos de seu pai é capaz de fazer com que ele mude de idéia. Isso era tudo que o norte-americano queria e precisava na década de 70, um sujeito que procurava um modelo com grande senso de devoção à família e muitos sonhos. Literalmente, um cara que pudesse acreditar novamente.

Essa figura era necessária especialmente por conta da disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética e o forte abalo na fé no governo graças a escândalos, como, por exemplo, o Caso Watergate. Os mocinhos precisavam de um novo modelo, um novo herói, que não fosse mais o soldado da Segunda Guerra Mundial ou um caubói destemido. Este novo sujeito deveria ser forte o suficiente para levar o povo norte-americano para a última fronteira da época: o espaço! George Lucas acreditava “que seria possível construir uma nova, e complexa, mitologia moderna baseada na vastidão do espaço”.

E era exatamente isso que Luke representava, um personagem que poderia suprir as necessidades e deixar a crescente sensação de egoísmo de lado. De certa forma, Lucas deu o primeiro grande passo para combater a crescente mentalidade corporativa baseada em especialistas e consultores focados em resultados. A carga cultural entregue por Guerra nas Estrelas dizia claramente a todos, pela voz de Obi-Wan Kenobi: confiem em seus instintos. Era disso que eles precisavam. E era justamente o oposto disso que Darth Vader representava.

Enquanto Luke era o representante de Bem, com suas roupas claras e ideais imaculados, do outro lado do espelho estava a figura opressiva de Darth Vader, com seus trajes negros e respiração mecânica. Vader e o Império incorporavam a postura tecnocrata, totalitária e destrutiva associada às grandes corporações e à nem tão distante memória do regime nazista de Adolph Hitler. Para Campbell, “Vader é um burocrata, vive não nos seus próprios termos, mas nos termos de um sistema imposto. Este é o perigo que hoje enfrentamos, como ameaça às nossas vidas. O sistema vai conseguir achatá-lo e negar sua própria humanidade?”.

No começo, Luke sonha em integrar esse sistema ao se tornar um piloto espacial, mas é contido pela responsabilidade familiar. Após a morte dos tios, ele decide deixar o planeta e atender ao chamado de Obi-Wan Kenobi para, então, cumprir uma importante etapa do herói mitológico, pois “o menino, primeiro, tem de se separar da própria mãe, encontrar energia em si mesmo, e depois seguir em frente. É disso que trata o mito do ‘Jovem, vá em busca de seu pai’. Às vezes é um pai místico, mas, às vezes, é um pai físico”, de acordo com Campbell.

A grande verdade é que Luke só aceita seu “destino” por ter um certo desejo de vingança pelos tios mortos. Estas características eram muito comuns nos filmes de faroeste das décadas anteriores ? um jovem fazendeiro da fronteira sobrevive à carnificina provocada por índios ou bandidos e parte em busca de amadurecimento para obter vingança e pela justiça contra o sistema que permitiu a tragédia ? e foram assimiladas pelo jovem Skywalker e por vários outros personagens da ficção científica, tais como o príncipe Colwyn (Krull, de 1983) e Alex Rogan (O Último Guerreiro das Estrelas, de 1984).

Por ter o dom do herói, o personagem logo recebe a espada de seu pai e dá os primeiros passos de sua jornada em prol da causa universal, representada pelo pedido de ajuda de Leia, e da justiça que ele busca para si mesmo, em nome de sua família. As motivações de Luke, portanto, se adequam às do herói clássico, que é fadado a abrir mão da própria existência como conhece para o bem do todo.

30 anos depois... no mundo da tecnologia

Desde o salto tecnológico e da estrutura mitológica apresentada pela trilogia de Guerra nas Estrelas, o cinema de ficção científica não havia produzido outro grande fenômeno que repercutisse tanto em resultado de bilheteria quanto em influência social até o ano de 1999, quando estreou Matrix, dos irmãos Andy e Larry Wachowski. Com ele surgiu a figura de Neo, que, como o próprio nome já significa, encarna o “novo” herói do gênero ou, ao menos, uma nova versão.

A criação de Neo foi muito influenciada pela tecnologia e também pelos arquétipos clássicos da mitologia, em particular, do panteão grego. Ele surge adormecido em seu apartamento quando é contatado por Morpheus, o deus dos sonhos. Alheio à verdadeira natureza da Humanidade, o então Thomas Anderson fica confuso e curioso, mas logo é interrompido e começa a notar os sinais do início de sua jornada ao ver a tatuagem de um coelho branco na acompanhante de seu cliente. Dando sentido à mensagem de Morpheus.

A forma direta com que conceitos religiosos, mitológicos e a forte presença de discussões sobre relações de dominação – especialmente em Matrix Reloaded – se refletem na atual situação cultural e tecnológica em que vivem jovens do mundo todo. Neo representa o topo desse submundo porque é um hacker extremamente habilidoso.
Ele é um reflexo de parte da sociedade atual: mora sozinho num apartamento desordenado onde cria seus programas, tem vida própria na Internet, recebe um fluxo gigantesco de informações diariamente, cria suas próprias regras sociais e ídolos, pirateia informação e busca respostas, ou seja, seu habitat virtual e noturno, que é muito diferente da vida diurna como Thomas Anderson, programador de uma empresa de software.

Neo não tem vínculos familiares, vive duas vidas (reprimido e parte da engrenagem durante o dia e idolatrado durante a noite), como dois lados de um espelho que é virado ao entardecer e que volta à posição original ao amanhecer, e possui a percepção de que algo não está certo para si mesmo ou para o mundo.
Morpheus o contata por crer que ele seja o escolhido ? one, anagrama para o nome Neo ? da antiga profecia que antecipa o retorno do homem capaz de comandar as máquinas, acabar com a guerra entre Humanidade e inteligência artificial e devolver a liberdade à raça humana. Neo, porém, não sabe do fardo que carregará e aceita os conselhos de Morpheus para encontrá-lo, especialmente para encontrar a resposta a uma pergunta: O que é a Matrix?

O início da jornada de Neo é motivado pelo desejo incontido do personagem por conhecimento - sobre o mundo a sua volta e si mesmo - e possibilitado por seu dom e percepção extraordinários, mesmo que não muito desenvolvidos para seu real uso. Finalmente, ele abraça a causa universal e aceita seu papel de herói. Neo já buscava o conhecimento por sua conta e o surgimento de Morpheus mostrou um caminho mais curto e promissor para a solução de suas dúvidas.

Thomas Anderson veste-se com terno e gravata e tem um chefe exigente na companhia, enquanto Neo é despojado e dita suas próprias regras (antes de despertar da Matrix) e, depois de seu renascimento, assume o negro das roupas de couro, sobretudo e dos óculos escuros, também usados por seus colegas renascidos. Assim, nota-se que o herói moderno não mais responde pelo arquétipo visual do branco e claro simbolizando o Bem, enquanto o Mal não mais se apresenta em negro e com visuais horripilantes. Na Matrix, o Mal ganha forma na figura dos Agentes, entidades capazes de tomar o lugar de qualquer representação humana que ainda esteja conectada ao sistema, ou seja, qualquer um é o Mal em potencial.

Senhores de seus mundos, os jovens tecnológicos definem moda própria, um dialeto independente e regras de conduta para demonstrar o descontentamento e se consideram membros de um grupo mais preparado para lidar com o novo século, tal qual explica Morpheus: “a Matrix é um sistema, Neo. Esse sistema é nosso inimigo. Se você não é um de nós [pessoas prontas para acordar e lutar contra o status quo], é um deles. Dentro da Matrix, eles são todos e não são ninguém”. Depois de finalizar sua jornada e descobrir sua “nova vida”, como o Oráculo havia previsto, Neo faz uma ligação direta ao espectador. Quem quiser que atenda ao telefone.

Novo Mundo, Novas Necessidades

Embora Luke Skywalker e Neo tenham percorrido, inegavelmente, a jornada clássica do herói, foram criados em momentos diferentes. Guerra nas Estrelas (anos 70) apóia-se diretamente nos mitos clássicos, na filosofia oriental, tem grande influência de outro gênero, o western ou faroeste, e surgiu num momento em que a Humanidade olhava para o espaço e para o futuro com sonhos e esperança. Matrix (transição entre os séculos XX e XXI) atingiu, em sua maior parte, uma sociedade pouco esperançosa, predominantemente influenciada pelos computadores e bombardeada diariamente por informação e previsões nada otimistas para o futuro, mesmo com a presença das mesmas filosofias que ajudaram a criar a obra de Lucas.

Portanto seus heróis assumem a função de porta-vozes do conteúdo de suas épocas. É com o herói que o público estabelece seu vínculo com a trama e aceita, ou não, o que ele tem a oferecer, ou seja, é ele que, em meio a sua jornada de nascimento, crescimento, morte e renascimento, faz sentido para o espectador.

Luke surge como uma espécie de príncipe destronado em meio aos camponeses bondosos e temerários por seu futuro incerto. Neo, por sua vez, é um mestre de seu mundo simulado, hábil e já numa busca particular pelo conhecimento e iluminação. Seu visual é sombrio, ele atua na penumbra do submundo e pode fazer as escolhas que deseja.

Obi-Wan Kenobi e Morpheus representam o arquétipo do sábio e guia. Obi-Wan convoca Luke a ajudar a princesa em perigo, o que o afastaria de sua família e responsabilidade. Morpheus oferece conhecimento e a verdade a Neo. Quando parte de Tatooine, Luke tem um objetivo heróico por natureza: auxiliar a rebelião contra o Império. Entretanto, ele não espera que tenha que ser engolido pelo monstro (a captura na Estrela da Morte), assistir à morte de seu mestre e resgatar a princesa do dragão. Mesmo parcialmente dissuadido a abandonar o desejo de vingança, é esse sentimento, aliado à novidade sobre a natureza nobre de seu pai, que o leva a partir definitivamente em auxílio ao grupo de rebeldes que luta contra o Império Galáctico.

Neo segue o coelho branco, atravessa o espelho e descobre que toda a existência humana está subordinada à Matrix, numa mentira induzida. Sua motivação é pessoal e até mesmo depois das revelações de Morpheus, ele reluta em aceitar sua condição de salvador, situação que só muda depois de seu segundo renascimento e, como disse a Oráculo, ele seria o Escolhido “talvez numa outra vida”.

A própria noção de Bem e Mal se mistura nos dois filmes. Em Guerra nas Estrelas, há a divisão clara entre o Lado Negro e o Lado da Luz, porém, é explícito que ambos coexistem no universo e nas pessoas. Em Matrix, o herói não veste branco e tem origem subversiva, enquanto o inimigo pode ser qualquer um: “se você não é um de nós, é um deles”.

Com o surgimento de Luke, o novo arquétipo do herói estava pronto – o homem capaz por sua percepção apurada, vínculo com a família e o comprometimento ideológico com a justiça em prol da sociedade –, ao passo que Neo, é um sujeito independente da família e capaz de direcionar sua evolução e realizações de acordo com sua capacidade para o bem próprio, num primeiro momento, e com conseqüências benéficas para a comunidade durante seu processo. Luke pode ser a pílula azul e Neo a vermelha. Qual das duas você vai tomar? Ou, pode, simplesmente atender à ligação e descobrir por si mesmo.

Publicado na Sci-Fi News 100, edição especial, junho 2006.
O material foi baseado na minha tese de especialização com o título de O Novo Herói da Ficção Científica Norte-Americana.

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